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A antiga poesia litúrgica católica: “Dies Irae”

18 de Fevereiro de 2021, por João Magalhães

Talvez possa interessar a nossos leitores, uma análise de textos poéticos, tantas vezes cantados ou declamados nas cerimônias litúrgicas mais antigas da Igreja Católica. Não vou me ater à poesia bíblica:  salmos, hinos e cantos, mas, sim, a uma poesia litúrgica criada por poetas católicos a partir do século III da era cristã, por exemplo, Santo Ambrósio e São Gregório Magno, e que floresceu copiosamente na Idade Média.

Uma poesia litúrgica como expressão estética de temas teológicos, sobretudo bíblicos. Uma poesia que se impõe por uma qualidade literária muito expressiva que reforça, poética e musicalmente, temas da devoção cristã.

Escreve o Pe. Heitor Pedrosa (“Nos Esplendores da Poesia Litúrgica” - Ed. Íntima -1928): “O acolhimento das letras cristãs na sociedade do século IV é um fato expressivo: por elas muitas almas sentiram a fascinação do Cristo Salvador e procuraram a Igreja. Nestas circunstâncias, as poesias desempenharam missão importantíssima. Por que é que a poesia somente começou no III século? Se são os grandes abalos, as fortes emoções, que fazem desabrochar a flor da poesia, nenhum período mais propício do que o tempo das perseguições. As ansiedades, as separações doloridas, o júbilo das conversões, o encanto das reuniões, a afetividade profunda aos irmãos, as agonias, os triunfos atravessados de dores, a paixão pelo martírio, as despedidas soluçantes, os espetáculos crudelíssimos no Coliseu, as lágrimas no recesso das catacumbas eram potenciais de inspirações felizes e da mais inflamada poesia”!

Alguns desses poemas sagrados cruzaram os tempos e foram e continuam sendo fonte de inspiração para os grandes compositores da assim chamada música clássica ou erudita. Caso do “Dies Irae”, “Te Deum” e “Stabat Mater”. A meu gosto, são joias da poética sagrada. É sobre eles que a coluna versará, trabalhando o verso poético. Uma edição para cada um.

A probabilidade maior é que o franciscano, Tomás Celano (1200-1255), um dos primeiros discípulos de São Francisco de Assis e um dos seus hagiógrafos, seja o autor do “Dies Irae”.

O “Dies Irae”, no entanto, formou-se lentamente. Textos e versos sobre o dia do julgamento final corriam dispersos na liturgia, na Bíblia, nos poetas, nos teólogos. Tomás Celano, bom poeta e escritor, teve a brilhante ideia de reuni-los num poema com 19 tercetos de intenso dramatismo, perfeitamente ritmados e rimados e com a métrica latina do verso troqueu (uma sílaba longa, outra breve).

Ezra Pound caracteriza uma poesia pelo seu grau de logopeia (ideias, reflexões, pensamentos, sentimentos); de fanopeia (visualizações, imagens, espaço, paisagem); de melopeia (musicalidade, ritmo, rimas, aliterações etc.).

O “Dies Irae” preenche tudo isso com excelência. O poema quase todo é uma longa logopeia, lembrando passagens das Sagradas Escrituras: o profeta Sofonias, 1,15 (Dies irae, dies illa), os Evangelhos (Qui Mariam absolvisti et latronem exaudisti..Inter oves locum presta et ab haedis me sequestra: tu que absolveste Maria Madalena e ao ladrão na Cruz ouviste...Coloca-me entre as ovelhas, retira-me para longe dos bodes) e, claro, o Apocalipse 20,12 (Liber scriptus proferetur: O livro escrito será mostrado); textos litúrgicos anteriores, por exemplo, de São Pedro Damião(o quam dira, quam horrenda voce judex intonat: Oh com que voz sinistra e horrenda o juiz pronuncia [sentença]) -  de Santo Anselmo (vix Justus salvabitur: apenas o justo se salvará) -  de São Bernardo (quid in illo die dicturi sumus?: O que diremos naquele dia?) E tantos outros.

E a fanopeia? O juiz de extrema majestade (rex tremendae maiestatis) sentando-se no trono de julgamento; a natureza e até a morte, estupefatas com o ressurgir das criaturas (Mors stupebit et natura cum ressurget creatura); o livro onde tudo está anotado (Liber scriptus proferetur in quo totum continetur).

A melopeia dispensa comentários e demonstrações. Basta observar a cadência, as rimas, o som da trombeta (Tuba mirum spargens sonum per sepulchra regionum: a trombeta espalhando um som assombroso pelos sepulcros das regiões).

 

Letra do poema religioso Dies Irae em versão integral

 

Dies irae! Dies illa (Dia da ira! Aquele dia) /Solvet saeculum in favilla (Em que os séculos se dissolverão em cinzas) / Teste David cum Sibylla! (Como testemunham Davi e a sibyla).

Quantus tremor est futurus (Quanto pavoroso será) /Quando iudex est venturus (Quando o juiz vier) /Cuncta stricte discussurus! / (Julgar tudo rigorosamente).

Tuba mirumspargenssonum (A trombeta entoando um som assombroso) / Per sepulchraregionum (Pelos sepulcros das regiões / Coget omnes ante thronum (Conduzirá todos perante o trono).

Mors stupebit et natura (A morte e a natureza se espantarão/ Cum resurget criatura (Quando ressurgir a criação) / Iudicantiresponsura (Para responder ao julgador).

Liber scriptus proferetur (O livro escrito será trazido) / in quo totum continetur (Em que tudo está contido) / Unde mundus iudicetur (De onde o mundo será julgado).

Iudex ergo cum sedebit (Quando o juiz, portanto, tomar o seu lugar) /Quiquid latet apparebit (Tudo que está oculto aparecerá) / Nili nultumre manebit (Nada impune permanecerá).

Quid sum miser tuncdicturus? (O que eu, um miserável, direi?) /Quem patronum rogaturus(A que patrono rogarei?)/ Cum vixiustus sit securus? (Quando apenas o justo estará seguro?)

Rex tremendae majestatis (Rei de tremenda majestade) / Qui salvandos salvas grátis (Que salvas graciosamente os que devem ser salvos) / Salva me, fons pietatis (Salva-me, ó fonte de piedade)

Recordare, Iesu Pie (Recorda, piedoso Jesus) / Quod sum causa tuae viae (Que sou causa de tua vinda) /Ne me perdas illa die (Não me perca naquele dia).

Quaerens me, sedisti lassus (Buscando-me, sentaste exausto) /Redemisti crucem passus (Redimiste-me, sofrendo na cruz) /Tantus labor non sitcassus(Tanto trabalho não seja em vão!).

Iuste iudex ultionis (Justo juiz da punição) / Donum fac remissionis (Concede-me a remissão / Ante diem rationis (Antes do dia do acerto de contas)

Ingemisco tanquam réus (Gemo como um réu) / Culpa rubet vultus meus (A culpa enrubesce meu rosto) / Supplicanti parce, Deus (Poupa o suplicante, ó Deus)

Qui Mariam absolvisti (Tu que absolveste Maria [a pecadora]) / Et latronem exaudisti (E ao ladrão na cruz ouviste) / Mihi quoque spem dedisti(Também a mim deste esperança)

Preces meae non sunt dignae (Minhas preces não são dignas) / Sed tu bonus facbenigne (Mas tu, que és bom, sê benigno) / Ne perenni Cremer igne (Para que eu não seja cremado no fogo eterno)

Inter oves locum praesta (Dá-me um lugar entre as ovelhas) / Et ab haedis me sequestra (E separa-me dos bodes) / Statuens in parte dextra (Colocando-me à tua direita)

Confutatis maledictis (Condenados os malditos) / Flammis acribus addictis (Lançados nas chamas ardentes) / Voca me cum benedictis (Chama-me para os abençoados)

Oro suplex et acclinis (Rezo a ti, súplice e ajoelhado) / Cor contritum quase cinis (Coração contrito quase em cinzas) / Gere curam mei finis (Cuida do meu fim)

Lacrimosa dies illa (Lacrimoso aquele dia) / Qua resurget ex favilla (Em que ressurge das cinzas) / Iudicandus homo réus (O homem, réu a ser julgado)

Huic ergo parce, Deus (Portanto, perdoa a este) / Pie Jesu domine (Piedoso Senhor Jesus) / Dona eis réquiem (Dá-lhe o descanso).

 

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