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A antiga poesia litúrgica católica – parte 3: “Stabat Mater”

14 de Abril de 2021, por João Magalhães

O Hino

Escrevo às vésperas da Semana Santa. Claro que o tema será a dor de uma mãe que presencia seu filho morrendo numa cruz: o “Stabat Mater”, considerado um dos sete maiores hinos latinos de todos os tempos.

O texto é baseado na profecia de Simeão, quando da apresentação de Jesus no templo: “E a ti, uma espada traspassará tua alma” (Lc 2,35). Trata-se, portanto, de um hino em honra a Nossa Senhora das Dores, composto no século XIII, auge da devoção franciscana a Jesus Crucificado.

 

O Autor

Embora atribuído a outros, grande parte dos pesquisadores considera Jacopone de Todi como o autor real. Jacopone nasceu em Todi, Itália, região da Úmbria. Nobre por parte paterna e materna. Vida surpreendente, com aspectos novelescos. Filho de mãe protetora e de pai severo, ele estudou direito em Bolonha. Aí, leva uma vida dissoluta, acompanheirando-se com os estudantes da Universidade. Enriquece como advogado dos abonados. Casa-se com uma rica e muito piedosa jovem de Todi, mas, em 1268, sua vida sofre uma reviravolta. Num dia de jogos públicos em Todi, o palanque de madeira dos assistentes privilegiados desmorona. Entre as vítimas mortais, sua jovem esposa.

Ao socorrê-la, tira suas vestes e percebe, na cintura dela, um cilício (cordão de crina de cavalo com farpas, amarrado no corpo para fazer penitência). Mortificação, assim interpretada, para expiar os pecados do marido Giácomo (Jacopone).

Sente-se culpado e modifica radicalmente seu comportamento. O excesso de dor praticamente o enlouquece. Vende todos os bens e distribui tudo aos mais pobres. Homem de rua, coberto de andrajos, ridicularizado pelos meninos que o chamavam pejorativamente de “o doido Jacopone”!

Dedica-se ao catolicismo popular, mas estuda profundamente a teologia. Entra para a Ordem III Franciscana e após dez anos – 1278 – foi admitido entre os Frades Menores Franciscanos.

A Ordem de São Francisco e a Igreja Católica vivem profunda crise. A Ordem, uma divisão: uns querem uma regra (leis que regem uma instituição religiosa) mais branda, outros propugnam uma vida disciplinar e práticas severas. Os primeiros eram chamados de conventuais, os segundos, Irmãos Espirituais.

A Igreja, com 27 meses de vacância do papado, elege o eremita Pedro Murrone, que adota o nome de Celestino V, mas que renuncia poucos meses depois. Sucede-o Bonifácio VIII, que governa sob intensa oposição.

Jacopone está entre os opositores ferrenhos. Preso e excomungado por críticas, só em 23/12/1303 o sucessor de Bonifácio, o Papa Bento XI, revoga sua prisão e excomunhão.

 

A Estética

O poema se organiza em 10 estrofes de 6 versos. Sextilhas rimadas no esquema AAB – CCB. AA: e CC: rimas perfeitas: B: rimas imperfeitas. Estrutura poética que agradou aos ouvidos populares. Poesia cantada não só nas igrejas, mas também nos grupos de romaria, nas rezas grupais etc.

A força poética do poema-hino é uma pedra lançada num lago, formando ciclos e interagindo com outras formas de arte: pintura, escultura, arquitetura, teatro. Sobretudo, intumesceu as veias melódicas de compositores renomados, gerando inúmeras composições sacras, ditas eruditas: Pergolesi –Vivaldi – Rossini – Dvorak – Alessandro Scarlatti – Karl Jenkins – Fedele Fenaroli – Brunetti – Rheinberger – Perosi – Zoltan Kodaly – Agostino Stefani – Boccherini – Caldara – Tartini – Juan Mathias (compositor indígena mexicano). São os que conheço. Deve haver mais.

O padre Heitor Pedrosa (“Nos Esplendores da Poesia Litúrgica”), na extensa análise de cada verso, comenta: “Jacopone, com um senso muito agudo e profundo do coração humano, alterna e combina as considerações psicológicas com intuito sensível, isto é, com contemplação direta e espontânea: análise objetiva com a prece, o presente com o futuro, a fé com o misticismo, a alma com o corpo, o tempo com a eternidade.”

Prossegue o padre Pedrosa em sua análise: “O Stabat é o poema imortal das augustas dores de Maria, o poema que todos os cristãos jovens e velhos, grandes e pequenos, sábios e ignorantes, repetem com as mais suaves emoções da alma; é o poema cujo ritmo, quando embebido na música popular, nas notas profundamente patéticas da cantilena eclesiástica, em sua simplicidade ingênua faz reverdecer a esperança em tantas almas desconsoladas e reanima a fé em tantos espíritos abatidos pelo infortúnio.”

Versão integral, em latim e português, do Stabat Mater

 

Tradução: João Magalhães

 

Stabat Mater dolorosa (Estava a mãe dolorosa))

Juxta crucem lacrimosa (Junto à cruz, lacrimosa)

Dum pendebat filius (Enquanto pendia o filho)

Cuius animam gementem (Cuja alma que gemia)

Contristatam et dolentem (Aflita e em dor)

Pertransivit gladius (A espada traspassou)

 

O quam tristis et afflicta (Oh quão triste e aflita)

Fuit illa benedicta (Esteve ela, bendita)

Mater unigeniti (Mãe do unigênito)

Quae maerebat et dolebat (Que lamentava e se afligia)

Et tremebat cum videbat (E tremia, enquanto via)

Nati poenas incliti (Os sofrimentos do ínclito nascido)

 

Quis est homo qui non fleret (Qual é o homem que não chore)

Matrem Christi se videret (Se vir a mãe de Cristo)

In tanto suplicio? (Em tanto suplício?)

Quis non posset contristari (Quem não se entristecerá)

Piam matrem contemplari (Ao contemplar a piedosa mãe)

Dolentem cum filio? (Padecendo com o filho?)

 

Pro peccatis suae gentis (Pelos pecados de seu povo)

Jesum vidit in tormentis (Viu Jesus em tormentos)

Et flagelis subditum. (E submetido aos flagelos)

Vidit suum dulcem natum (Viu seu doce nascido)

Morientem desolatum (Morrendo desolado)

Dum emisit spiritum. (Enquanto entregava o espírito)

 

Eja mater fons amoris (Oh mãe, fonte de amor)

Me sentire vim doloris (Faça-me sentir a força da dor)

Fac ut tecum lugeam, (Faça que com você eu lamente)

Fac ut ardeat cor meum (Faça que arda meu coração)

In amando Christum deum (Para amar Cristo Deus)

Ut sibi complaceam (Para que eu o agrade)

 

Sancta mater, istud agas (Santa mãe, faça isso)

Crucifixi fige plagas (Fixe as chagas do crucifixo)

Cordi meo valide! (Validamente em meu coração)

Tui nati vulnerati (De seu nascido ferido)

Tam dignati pro me pati (Tão disposto a sofrer por mim)

Poenas mecum divide! (Divida comigo os sofrimentos)

 

Fac me vere tecum flere (Faça-me chorar com você verdadeiramente)

Crucifixo condolere (Condoer-me com o crucificado)

Donec ego vixero. (Enquanto eu viver)

Juxta crucem tecum stare (Estar com você junto à cruz)

Te libenter sociare (Associar-me com você de bom grado)

In plancto desidero. (No pranto, desejo)

 

Virgo virginum praeclara (Virgem das virgens luminosa)

Mihi jam non sis amara (Agora, não se amargue comigo)

Fac me tecum plangere. (Faça-me chorar com você)

Fac ut portem Christi mortem (Faça que leve comigo a morte de Cristo)

Passionis eius consortem (Consorte de sua paixão)

Et plagas recolere (E suas chagas venerar)

 

 

 

Fac me plagis vulnerari (Faça que eu seja vulnerado por suas chagas)

Cruce hac inebriari (Inebriar-me por esta cruz)

Ob amorem filii. (Por causa do amor do filho)

Inflammatus et accensus (Inflamado e elevado)

Per te virgo sim defensus (Por ti, Virgem, seja defendido)

In die judicii. (No dia do juízo)

 

Fac me cruce custodiri (Faça-me ser guardado pela cruz)

Morte Christi praemuniri (Ser premunido pela morte de Cristo)

Confoveri gratia (Confortado pela graça)

Quando corpus morietur (Quando o corpo morrer)

Fac ut animae donetur (Faça com que seja dada à alma)

Paradisi gloria. (À glória do paraíso)

 

Amen (Amém).

 

Versão livre de João Magalhães da letra do Stabat Mater

 

Quem poderia não

Compadecer

Vendo amãe de Cristo

Condoída com o filho?

 

Quem é o homem que não choraria

Se visse a mãe de Cristo

Em tanto suplício?

 

Oh mãe, fonte de amor

Faça-me sentir a força da dor

Para que eu lamente (?) com você.

 

Faça com que meu coração arda

Ao amar Cristo Deus

Para que ele se compadeça.

 

Santa mãe, faça isso

Funde as chagas do crucifixo

No meu coração com força

 

Divida comigo os

Sofrimentos

Da ferida do seu filho tão

Gentil a sofrer

Por mim.

 

Faça com que eu chore

Piedosamente com você

Com que eu condoa com o crucifixo

Enquanto eu viver

 

Esteja com você junto a cruz

Me uma com você

No pranto pelo luto

 

Faça-me guardado pela cruz

Fortalecido pela morte de cristo

Confortado pela graça

 

Quando meu corpo morrer

Faça com que a alma seja dada

À gloria do paraíso

Amém.

 

 

 

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