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A pandemia e o Cemitério

18 de Novembro de 2020, por João Magalhães

Fachada do Cemitério do Carmo, no centro histórico de São João del-Rei (foto Vanuza Resende)

Imagens tristes de escavadeiras fazendo covas nos cemitérios, Brasil afora, no auge da pandemia... sepultamentos sem presença de familiares... caixões lacrados... inexistência de velórios... as pessoas sem poderem despedir-se de entes queridos... impressionam a nação. É um drama humano. Com certeza, a comemoração do Dia dos Falecidos, dois de novembro, sofreu modificações. 

Vamos, antes, ao significado do nome. Cemitério: do grego “koimeterion”, que significa dormitório, local de repouso. Conforme o historiador medievalista belga Michel Lauwers (“O Nascimento do Cemitério – Lugares sagrados e terra dos mortos no Ocidente medieval”), um clérigo italiano do século XI, de nome Pápias, gramático e lexicógrafo, apresentou uma outra etimologia do vocábulo. Derivando, segundo ele, do latim “cinis”: cinza, Daí: “Cinis-terium”. Cimiterium: local onde os falecidos se reduzem a cinza. Pensamento, aliás, muito enfatizado na liturgia católica na Quarta-Feira de Cinzas, após o Carnaval: “Lembra-te, ó homem, que és pó e ao pó retornarás (“Memento homo quia pulvis es et in pulverem reverteris”).

Aproximadamente, a partir do século IX, cria-se na cristandade o conceito de “terra cemiterial” (terra cimiteriata). Terra consagrada, pela Igreja Católica. Campo santo que abriga os restos mortais de seus adeptos.

Estudos antropológicos, arqueológicos e históricos mostram que o culto aos mortos é uma prática universal entre os povos até agora conhecidos. Faz parte da natureza humana, que tem enorme dificuldade de aceitar a própria finitude. Daí o conceito cristão: a vida não é tirada, apenas muda-se (“vita mutatur, non tolitur”).

Os seres humanos buscam meios de permanecer juntos, embora inexista, pela morte, a presença física. E as fórmulas de manifestar sua lembrança, seu afeto, seu orgulho de pertencer ao clã do finado vão desde o sepultamento no piso das habitações até as fantásticas necrópoles, verdadeiros museus ao ar livre.

O culto supõe rito e rito supõe local e participantes. Daí a tríade: Cemitério, terra dos mortos; a igreja ou capela onde os ritos são vivenciados; e o povoamento, terra e habitação dos participantes.

O Cemitério com sua dimensão simultaneamente material (local dos restos mortais), espiritual (fé, orações, homenagens, promessas) e cotidiana (um dia viveram o cotidiano conosco) é uma criação da Igreja Católica, num processo lento, iniciado no século IV e que chega ao auge entre os séculos IX e XI.

Com o tempo, a terra dos mortos ritualmente consagrada e o próprio templo fundem-se. O templo, tornando-se uma extensão do cemitério, honra os falecidos mais ilustres com a permissão de túmulos no recinto sagrado e nos adros. Benfeitores, ao doarem terras à Igreja, punham como condição o abrigo de seus túmulos dentro do templo sagrado.

A sagração tem um efeito importante para a hierarquia católica, pois a Igreja se torna proprietária dos espaços consagrados, sempre mais fortificado pelo seu trabalho de misericórdia, a caritas cristã, em particular no domínio funerário. Por outro lado, afasta os não-católicos que passam a construir os próprios.

Citando Michel Lauwers: “Na sociedade antiga, a sepultura era assunto privado, pertinente às famílias – ou semiprivado, quando era providenciado pelos colégios. Só a inumação dos mais pobres era de responsabilidade das cidades, notadamente por razões sanitárias.”

A Igreja antiga prolongou essa tradição, como testemunha a reflexão de Santo Agostinho (morto em 430): a Igreja “como mãe piedosa assume a responsabilidade pelos fiéis defuntos enquanto ‘os pais, os filhos, os aliados ou amigos’ negligenciam esse dever”, ou como atestam as preocupações do arcebispo de Milão, Ambrósio (morto em 397), cioso em dispor em sua cidade terrenos destinados ao enterro dos pobres”.

Qual será o futuro do cemitério? Ao nascer, praticamente o cemitério extinguiu a cremação no mundo católico, mas a cremação está voltando e com grande adesão. Será o futuro? Difícil prever.

Acho que a atitude mais importante é manter a sacralidade do culto aos mortos. Entendendo por sacralidade momentos de vida em que você transcende, cultiva seu espírito, revitaliza ou reforma suas características de pessoa, vê como anda seu grau de humanismo, revivencia os momentos juntos com aqueles cuja vida na Terra teve fim: os finados.

É o que penso. E você?

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