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Anos de perigo e medo: minhas vivências com a ditadura Brasileira de 1964 – parte 1

12 de Dezembro de 2017, por João Magalhães

Embora objeto de muitas conversas, nunca pensei em algum relato por escrito dos anos que vivi sob o mando da ditadura, mais de 20 anos de minha vida e todo o ministério como padre católico.

Porém, ante os ventos do mundo ocidental assoprando para o reacionarismo, mocidade clamando por militares, grupos propugnando voto em personagens, tipo Bolsonaro; vendo censuras a exposições de arte até em museus, lendo 350 mil assinaturas pedindo o cancelamento da participação num evento do Sesc da filósofa americana Judith Butler que aborda com profundidade a temática de gênero (“Caminhos Divergentes” etc.) e mais coisas... repensei.

Valeu também a sugestão de quem não viveu tais dias de antiliberdade, inclusive do André Eustáquio, nosso editor-chefe. Talvez contribua, em algo, a nossos leitores.

Não tenho marcas físicas da ditadura, pois nunca fui preso, nem sofri perseguição. Investigação, talvez, pois lecionei por certo tempo com F.  (por respeito a elas e por razões éticas e até segredo de confissão, pessoas serão nomeadas pela inicial do nome ou sobrenome), professor de Geografia. Mais tarde se soube que era oficial do Exército e espião.

Poderia ter padecido, pois em meados de 1963, ano véspera do golpe militar, eu era diácono, último degrau da escada para o sacerdócio e fazia a assistência religiosa a uma equipe da JUC (Juventude Universitária Católica), estudantes de medicina e de engenharia. Assistente nacional era o Dominicano frei Lucas Moreira Neves, mais tarde bispo auxiliar de Dom Paulo Evaristo Arns e futuro cardeal de Salvador, Bahia.

Quando o grupo começou a tender mais para o movimento político da AP (Ação Popular), achei que não era minha missão e saí.

Alguns desses jovens foram seriamente golpeados pelo Golpe. O mesmo aconteceu com o Soligo, meu coirmão de Ordem Religiosa e colega de turma, que militava na pastoral operária. Preso duas vezes e torturado barbaramente.

Nossa formação, na década de 60, era para sermos ministros de uma Igreja Povo de Deus. Toda organização religiosa deveria se voltar para a promoção humana. A Teologia em função da pessoa e não o contrário, como se via e vê. Nisso, não se podia transigir.

Primeira experiência com a ditadura foi com L., participante de um grupo do MFC (Movimento Familiar Cristão). Bem de vida, mas emocionalmente inconformado, pois fora expurgado do Exército, porque uma guarnição do Vale do Paraíba, onde era capitão, especializado em mecanização, confiando que o comandante do II Exército, general Amaury Kruel, ficaria com a legalidade, pois demorava um pouco para aderir, marcou posição a favor de Goulart.

Os anos de serviço religioso como capelão camiliano (1965-1969) no grande Hospital dos Servidores Públicos de S. Paulo (IAMSPE) foram tranquilos.

 Só uns dias de temor. L.S., internada com nome falso, pois, procurada pelo DOPS (Departamento de Ordem Política e Social do sinistro delegado Fleury), confiando, pediu minha ajuda, caso fosse descoberta. Seu companheiro I.A., jornalista da Folha de S. Paulo, já estava nos horrores do cárcere. Não precisou, pois, 20 dias depois teve alta e nunca mais a vi.

 Lembrando que ajudar um perseguido da ditadura era um enorme risco. De imediato era considerado cúmplice.

Em 1968, com a direção da Ordem dos Camilianos permitindo, matriculei e me formei em Serviço Social nas FMU (Faculdades Metropolitanas Unidas). No primeiro ano, lecionava Psicologia, uma jovem professora, com uma competência e carisma que atraía todo o alunado: Iara Iavelberg.  Passados 6 meses, sumiu. Nunca mais a vimos.

Em agosto de 1971, notícia da morte da companheira do Capitão Lamarca, executada pela repressão da ditadura num apartamento de Salvador, Bahia: Iara Iavelberg!

Em 1969, a Cúria Romana autorizou minha transferência para o clero diocesano e fui muito bem aceito pela arquidiocese de S. Paulo. Missão: coordenação da pastoral hospitalar. Não aconteceu porque preferiu-se nomear-me pároco da paróquia de São Benedito, Vila Sônia/SP, onde fiquei até a saída do clero, a meu pedido.

 (Continua...)

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