Voltar a todos os posts

Anos de perigo e medo: minhas vivências com a ditadura brasileira de 1964 – parte 2

16 de Janeiro de 2018, por João Magalhães

Os anos no clero diocesano (1970 a 1977) foram difíceis. Claro, tínhamos o apoio e a proteção de um corpo de bispos corajosos com quem comungávamos a pastoral: dom Jorge Marcos, Valdir Calheiros, Cândido Padim, José Maria Pires, os primos Lorscheider (Aloisio e Ivo) etc. E a equipe principal de dom Paulo Evaristo Arns: dom Luciano, dom Angélico e no meu caso dom Mauro Morelli, com quem trabalhei diretamente como coordenador (hoje: vigário forâneo) de 10 paróquias, inclusa a minha.

Dom Mauro Morelli, muito ligado aos movimentos populares, às comunidades de base, apoiando muito o nascente PT, como nós também. Colaborador no primeiro mandato do Lula. Até hoje com as propostas evangélicas que sempre teve.

Mas no caso de algum problema, presos seríamos nós, padres e leigos, porque não convinha à repressão prender bispo.

E registro os momentos mais difíceis como foram a censura do jornal “O São Paulo” e o cancelamento da concessão da rádio Nove de Julho, ambos, órgãos de evangelização da Arquidiocese de S. Paulo. Inúteis, os abaixo-assinados, perigosos os protestos contra tais atitudes.

E a divulgação de documentos e/ou declarações da CNBB (Conferência Nacional dos Bispos do Brasil) e da nossa Arquidiocese, acompanhados das necessárias explicações nas homilias? Por pouco, podia-se acusá-lo de subversão.

Lembro que para nomeação ou contrato como professor em estabelecimentos públicos de São Paulo (e para uma maioria significativa também dos particulares) era necessária a famigerada ficha amarela emitida pelo DOPS (Departamento de Ordem Pública e Social) com oNada Consta”.

Momentos tensos formam as vigílias que promovíamos para a soltura do padre Júlio Vicini e da assistente social Iara Spadini, que faziam um extraordinário trabalho social com as comunidades no setor da M’Boi Mirim da nossa região. Presos e torturados.

E assim foram os assassinatos de Wladimir Herzog, de Manuel Fiel Filho, do líder comunitário Santos Dias. Fica na História o Culto Ecumênico, oficiado por dom Paulo, rabino Henri Sobel e pastor James Wright, para Wladimir Herzog. A praça da Sé toda cercada pelas tropas e o temor de alguma repressão violenta.

 Sério perigo levar recado ou bilhete de preso político para familiares e vice-versa. Descoberto, o portador era considerado cúmplice e nenhum dos nossos, que eu saiba, se recusou a fazê-lo.

 

Uma noite de insônia. Raríssimo eu ter insônia, mas naquele sábado tive. Esperava à porta da igreja (paróquia de São Benedito – Vila Sônia/SP, onde fui pároco por 6 anos) a chegada de um noivo. Uma onda de vento abriu o paletó de um senhor a meu lado. Vi no cinto uma pistola. Ele viu que eu vi.

Dirigiu-se a mim: senhor padre, desculpe de eu estar armado dentro da igreja. Sou uma pessoa muito visada, pois trabalho no DOPS. Resumindo: era um dos torturadores! E sem qualquer remorso foi-me detalhando seu comportamento. “São comunistas! Tem que prender, tem que bater, tem que eliminar! E olha, sou católico praticante. Todo domingo comungo lá na igreja do Largo São Francisco! Apliquei um corretivo pra valer até numa freira (concluí que seria, talvez, a madre Valentina, presa por ter cedido o colégio, em Ribeirão Preto, para um encontro da União Nacional dos Estudantes – UNE). E teve um frade, daqueles lá das Perdizes (bairro do convento e igreja dos frades Dominicanos) que ousou me desafiar. Nesse eu bati, mas bati mesmo! Sabe, reverendo, tenho um pequeno remorso, nem sei se é remorso! Um dia pendurei um desses comunistas (!) no pau-de-arara. Fui para o Mercado Central (fica mais ou menos a 1 km do DOPS). Passadas umas 2 horas lembrei: ih! Esqueci de dependurar o cara!!”.

Nesta noite, não dormi, martelando em minha cabeça o aviso de Jesus aos discípulos em Jo 16,2: “Virá uma época em que todo aquele que vos tirar a vida julgará prestar culto a Deus”.

 Transcorrido um tempo, quem vejo na primeira fila, ouvindo um testemunho na AA (Associação Antialcoólica) da paróquia?  O G (inicial de seu nome), o torturador.

Vendo o pessoal, sobretudo faixas significativas de jovens, clamando por militares, por ditadura, me pergunto se não é o caso de parafrasear Jesus Cristo em Lc 23,34: “Pai, perdoai-lhes: não sabem o que fazem”.

Deixe um comentário

Faça o login e deixe seu comentário