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O gato e os ratos

16 de Agosto de 2020, por João Magalhães

“Gracias a la vida”, nasci com uma propulsão quase obsessiva para a leitura que continua até hoje. Lembro-me dos dois primeiros livros que li, logo que me alfabetizei no nosso “Assis Resende”.

No velho Tijuco onde nasci e me criei, morava o sr. Olivério. Pessoa estranha, solitária, isolada, sistemática, como se falava, com pouquíssimo relacionamento. Por isso, tínhamos medo dele: pacto com alguma força do além?! Fazia exceção para meu pai.

Uma curiosidade: única pessoa do Tijuco que tinha livros. Certa ocasião, emprestou dois para meu pai. Sorrateiramente, às escondidas, li os dois. De um, não lembro o título. Acho que histórias de fada: Perrault? Grimm? Andersen?

Do outro, a lembrança é perfeita: o famoso “Contos Pátrios”, de Olavo Bilac e Coelho Neto, que achei num sebo, dezenas de anos mais tarde.

Vem dessa remota leitura minha predileção por leitura de histórias moralizantes, de conselhos de sábios, de educação, como são as alegorias, as parábolas, as fábulas, os apólogos, os “contos sapienciais” tão utilizados pelas tradições e escritos bíblicos.

Sobretudo as fábulas. Desde a infância, sempre me atraem pela antropoformização, com animais, plantas e objetos tendo comportamentos humanos, e pelo simbolismo: por exemplo, o lobo representando a prepotência humana; a raposa, a esperteza para o mal; uma erva-de-passarinho, o envenenamento da natureza; um gato, a atual pandemia etc.

Cheguei a decorar algumas delas, até em latim. Da famosa “Lupus et Agnus”, de Fedro, lembro-me até hoje. Li e colecionei todas que encontrei: Esopo, Fedro, La Fontaine, Trilussa, Monteiro Lobato...

Depois, como professor, vi nelas um excelente instrumento para criar hábitos de leitura, para debater situações, para analisar personagens e comportamentos, ilustrar vícios ou virtudes etc.

Com o tempo, impus-me um desafio: criar algumas com dois intuitos. O primeiro – e mais importante – um esforço para que minha memória não carunchasse por falta de exercício. O segundo, contribuir com algum material para debater problemas humanos, sobretudo os ligados à cidadania. Duas condições: fossem originais. Semelhanças, sim, mas não cópias nem imitações. As personagens: animais, plantas e coisas deveriam surgir da fauna e flora brasileiras.

Algumas nasceram, dez ou doze mais ou menos. Por exemplo, “O lambari e a minhoca”, “A parasita e o carrapato” “O tico-tico e o chupim”, “O gambá e o carcará”, “O papagaio educador” etc.

O tempo passou. Agora, neste isolamento pandêmico – vendo e ouvindo a mídia mostrando emocionantes gestos de solidariedade, mas também ações de inominável maldade humana, como roubos, golpes, desvios, apropriações das ajudas – mexendo e descartando papelada que a gente vai acumulando, dei de cara com alguns originais dessas fábulas. Dentre elas, esta:

 

O gato e os ratos

“Uma comunidade de ratos vivia num lugarejo. Como sempre, um pequeno grupo vivia ricamente, acumulando comida, pois dominava tudo. Um outro grupo, um pouco maior, também vivia muito bem, defendendo as posses dos ricos, sendo pago para isso. Não faturavam igualmente. Uns menos, outro mais, mas de alguma maneira tinham uma vida decente. Para a maioria, restavam a pobreza e a miséria. Não tinham reserva alguma. Todo o dia era uma luta para terem o que comer.

Moravam todos numa grande toca. A minoria rica, luxuosamente; outros, bem, outros razoavelmente. Claro, a maioria em abrigos precários.

Certo dia, todo mundo ouviu um terrificante miado de um gato e logo em seguida um bichano enorme e faminto apareceu na praça. Todos entraram na grande toca. O gato cercou o lugar. No segundo dia, os ratos miseráveis já não tinham o que comer. No terceiro, os pobres também não. E nada de os outros ratos ajudarem. Pelo contrário, egoisticamente continuavam explorando os outros.

Aí, uns ratos líderes reuniram todos e o coordenador deles falou: Pessoal, ou a gente se organiza, partilhando as próprias coisas, ou todo mundo morrerá. A comida estocada dá para todo mundo, se for racionada e distribuída justamente entre todos. Conseguiremos ficar aqui por alguns dias. Nesse tempo, o gato deixará este local por alguns momentos, também ele buscando comida. É a nossa chance de escapar!

Os ratos privilegiados deram risada! E ai dos que tentassem tirar alguma coisa deles! Não deu outra. Desesperados, os famintos foram saindo da toca. Ao menos, podiam ter alguma chance de escapar da boca do gato. Se ficassem, a morte era certa. Nenhum conseguiu. O gato engordava cada vez mais, refestelando-se por bastantes dias ali na entrada da toca. Só foi embora quando uma catinga insuportável começou a exalar. Viu lá no fundo do buraco os cadáveres amontoados. Ninguém vivo.”

A moral da fábula fica por sua conta, caro leitor.

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