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O Ovo da Serpente e a Campanha da Fraternidade

17 de Marco de 2020, por João Magalhães

Entram neste texto, uma certa vivência, uma contraposição e uma discussão. A vivência – que agora é lembrança – refere-se à quase sexagenária Campanha da Fraternidade, criação da CNBB (Conferência Nacional dos Bispos do Brasil), vivida e intensificada na Quaresma. Lembrança da intensa movimentação na Paróquia de São Benedito, Vila Sônia/ SP capital, onde fui pároco de 1970 a 1977. Equipes mistas, adultos e jovens, que orientavam a meditação dialogada sobre o tema em famílias nos vários quarteirões. Espiritualidade ecumênica e prática. Tenho até hoje todos os manuais daqueles anos. Primam pelo conteúdo e são boa fonte de pesquisa.

A contraposiçãovem da Campanha da Fraternidade 2020 e o lema: Fraternidade e Vida: dom e compromisso. A vida plena em suas formas múltiplas: desde o vegetal e a bactéria positiva que fornece fontes de energia, até a vida no seu mais alto grau de evolução que, no momento, é o homo sapiens, sapiens. O ente que sabe quem ele é, e o porquê, para quê, com quê e com quem faz as coisas. E também o cuidado e a preocupação com a “casa comum”, na expressão do Papa Francisco. Bate de frente com o Nazismo, cujo centenário de criação aconteceu agora.

Remeto-me ao genial cineasta sueco Ingmar Bergman (“O Ovo da Serpente”) e ao simbolismo trágico da serpente na narrativa bíblica (Gn 3,2-6), pois, em fevereiro de 1920, o Partido dos Trabalhadores Alemães tornou-se o Partido Nacional Socialista dos Trabalhadores Alemães (Nationalsozialistische Deutsche Arbeiterpartei – NSDAP). Faz 100 anos que a serpente botou um dos seus ovos mais terríveis: o Nazismo de Hitler.  Horror repulsivo para milhões. Regozijo absurdo para muitos de nossos compatrícios! Tem até gente copiando discursos de Goebbels...

A serpente concentrou nesse ovo seus males espalhados pelo mundo, como o genocídio, o nacionalismo excludente, o discurso antidemocrático, o instinto mandão, o preconceito racial, o antissemitismo, o orgulho e a supremacia da raça, a eugenia étnica, o “socialismo” tribal, ou seja, só entre nós. E tantos outros.

O sociólogo Simon Schwartzman (“A Tentação de Goebbels”, OESP,14/2/2020) comenta uma carta de 1934 para Getúlio Vargas, escrita pelo seu chefe de gabinete, Luís Simões Lopes. Visitando a Alemanha, mostra no seu escrito seu fascínio pelo Ministério de Propaganda de Goebbels: “O que mais me impressionou em Berlim foi a propaganda sistemática, metodizada do governo e do sistema de governo nacional-socialista. Não há em toda Alemanha uma só pessoa que não sinta diretamente o contato do nazismo ou de Hitler, seja pela fotografia, pelo rádio, pelo cinema, através da imprensa alemã, pelos líderes nazis, pelas organizações do partido.” E aconselha: “A organização do Ministério da Propaganda fascina tanto que eu me permito sugerir a criação de uma miniatura dele no Brasil. Evidentemente, não temos recursos para manter um órgão igual ao alemão (...) mas podemos adaptar a organização alemã dotando o país de um instrumento de progresso moral e material formidável.”

Progresso moral e material formidável?!! A justificação do decreto de Getúlio, criando em 1939 o DIP (Departamento de Imprensa e Propaganda), de trágica memória, foi praticamente um resumo dessa carta de 1934.  

Schwartzman conclui: “É possível que hoje, como nos anos 1930, a grande tentação de Goebbels não seja tanto a ideologia grotesca do nazismo, com antissemitismo assassino, o nacionalismo doentio, o anti-intelectualismo e o culto macabro da morte e da violência, mas, sobretudo, a indiferença ética e moral dos que colocam seus objetivos políticos, com boas ou más intenções, acima de tudo e não se importam com os meios para chegar a seus fins.”  

A discussão. Discute-se até hoje se existe um mal absoluto. Ou seja, um mal sem nenhuma exceção ou restrição. As correntes filosóficas divergem muito a respeito. Para Nietzsche, por exemplo, o mal seria apenas aquilo que impede a “afirmação da vida”. A meu ver, existe. Um partido, por exemplo, que põe como programa a extinção de um povo, como foi o nazismo, é um mal absoluto.

É o que penso. E você?

Comentários

  • Author

    Agradeço o artigo, pela bela, embora trágica, lembrança, e por nos mostrar que a boa história, por retratar homens comuns, como eu e tantos outros, traz ensinamentos para o presente e o futuro. Quanto à pergunta, a controvérsia continua pois um mal absoluto seria aquele em que nem mesmo Deus poderia tirar algo ou dele fazer proveito? Não creio! Por fim, a quase sexagenária campanha da Fraternidade mereceria, de alguém que a viveu tão de perto e plenamente, um artigo comemorativo e crítico. Que eu saiba, não é praxe em outros países esse tipo de campanha ou mesmo, mas sou ignorante, atuação tão proativa de um conselho de Bispos. No aguardo!


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