Um pedaço da letra de que o próprio Fernando Brant fez para a clássica “Maria, Maria” explica o que era o talento desse grande poeta e letrista. Um talento que foi descoberto quase por acaso e por insistência de Milton Nascimento. As grandes parcerias na história da música parecem ter uma característica comum, que é a empatia quase imediata entre os parceiros, como se aquele encontro já estivesse predeterminado pelas forças da natureza. Foi assim com John Lennon e Paul McCartney, Paul Simon e Art Garfunkel, João Bosco e Aldir Blanc, e assim também o foi o encontro do Fernando Brant e Milton Nascimento.
Márcio Borges conta em seu livro “Os Sonhos Não Envelhecem” que Fernando e Bituca foram apresentados em um ônibus, por um amigo comum. No mesmo instante foi feito o convite para tomar uma cerveja (duas, na verdade, que era o que o dinheiro permitiria) e o amigo comum não podia ir. Foram só Fernando e Milton e, duas cervejas, um ovo cozido e algumas horas depois, nascia uma amizade que renderia ao mundo uma dupla inesquecível e que faria brotar um letrista do primeiro time da MPB. Milton havia saído de BH e se mudado para São Paulo para promover seu trabalho como músico quando compôs a melodia da canção que viria ser “Travessia”. Resolveu que essa letra não poderia ser feita por ele ou seu parceiro fixo, Márcio Borges, pois não tinha a cara deles. Acabou pedindo a letra para Fernando, que inicialmente se esquivou dizendo que nunca tinha feito isso, mas arriscou. Após receber a letra, Milton logo mostrou-a para Márcio, admirado: “a primeira coisa que o cara escreve na vida”.
O que aconteceu depois virou história. O cantor Agostinho dos Santos inscreveu, sem que Milton soubesse, três músicas de Bituca no Festival Internacional da Canção Popular de 1967, o FIC: “Maria Minha Fé”, “Morro Velho” e “Travessia”. As três foram classificadas para a grande final, o que alçou Milton instantaneamente à condição de revelação do festival. “Travessia” encantou o público e terminou em 2º lugar no festival (Milton ainda levaria o prêmio de melhor intérprete). De repente, Fernando Brant, um jornalista que não se via como poeta ou letrista, era dono de uma música aclamada. Ao ser entrevistado após o sucesso e indagado sobre seu trabalho, tinha dificuldade de explicar que era a única música que havia feito. E cobrava Milton por mais uma: “agora que você me pôs nessa, trate de compor logo outra, senão estou perdido.” E essa viria a ser “Outubro”, que saiu no disco de estreia de Milton em 1967. Estava inaugurada aí uma parceria que renderia vários clássicos da MPB. E ao mesmo tempo Fernando Brant se revelava um grande compositor destinado a ser parte do primeiro escalão da MPB ao colocar poesia em trabalhos de parceiros como Lô Borges, Toninho Horta, Beto Guedes, Tavinho Moura e tantos outros. Até o hino do América (não o oficial), time do coração de Fernando, leva uma letra sua.
O nome e legado de Fernando Brant entra para história da MPB ligado ao Clube da Esquina de maneira quase indissociável. Esse movimento musical que sacudiu a MPB nos anos 70 teve com Fernando, Márcio Borges e Ronaldo Bastos a “trinca de ases” de letristas que deram voz às complexas melodias e harmonias de Milton, Lô Borges, Beto Guedes, Toninho Horta e todo o “clube”. Quando se considera que a canção é o formato que dominou e domina a música brasileira, então não há como se separar letra e música da riqueza artística da obra da qual Fernando fez parte e deu vida. Impossível falar de amizade sem se lembrar de “Canção da América”. Ou pensar na identidade mineira sem lembrar do verso “sou do mundo, sou Minas Gerais”, contribuição de Fernando em “Para Lennon e McCartney”. Ou não sentir a dificuldade do caminho do músico que toca por um pedaço de pão “nos bailes da vida”.
Fernando agora termina uma parte de sua travessia, mas, como acontece com os grandes das artes, ele se tornou imortal ainda em vida, deixando uma obra inestimável e que vencerá gerações. Daqui a muitos anos tenho certeza que haverá alguém nas esquinas do mundo lembrando que amigo é coisa para se guardar, do lado esquerdo do peito.