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Te recuerdo

18 de Dezembro de 2019, por Renato Ruas Pinto

A música sempre foi uma expressão popular muito forte e uma canalização da voz das massas. Enquanto acontecia um concerto em algum palácio da nobreza europeia medieval, em uma feira popular próxima, muito provavelmente um menestrel cantava canções satirizando seus governantes. É o que chamaríamos hoje de “música de protesto”, termo que ficou popular nos anos 60. Aquela década ficaria marcada por protestos vigorosos em todo o mundo: contra inúmeras ditaduras, contra a guerra do Vietnã, nos EUA, movimentos de independência na África e Ásia e outras bandeiras. A participação da intelectualidade e artistas nas mais diversas formas de luta foi uma constante e a música sempre foi um canal bastante democrático por permitir que a criatividade transformasse a voz e um violão em armas poderosas. Porém, muitas vezes essa militância cobrou preços caros dos seus artistas. Em alguns casos, o maior a se pagar.

Os protestos recentes no Chile, de grande proporção e que já duram várias semanas, trouxeram a lembrança de um artista importante para aquele país e que pagou com a vida pela sua militância: Victor Jara. Jara simboliza como poucos essa força da música como canal de expressão e tem sido comum ouvir as multidões entoando suas canções nos protestos atuais. Victor Jara foi um cantor, compositor e diretor de teatro consagrado em seu tempo e que sempre pautou sua arte pelas causas sociais e pelo resgate da cultura popular chilena. Ao participar de grupos dedicados ao folclore chileno, começou a compor e logo foi incentivado pela compatriota Violeta Parra (autora de clássicos como “Gracias a la vida” e “Volver a los 17”) a seguir com seu trabalho. Foi um dos expoentes nos anos 60 do movimento conhecido por “Nova Música Chilena”, marcado pela recuperação da música tradicional chilena e politicamente engajado.

O Chile teve um respiro democrático e de reformas sociais importantes entre 1964 e 1973 nos governos de Eduardo Frei e Salvador Allende. O governo do último, porém, foi interrompido por um golpe militar cuja primeira ação foi prender e fuzilar sumariamente milhares de potenciais opositores ainda nos primeiros dias do golpe. Victor Jara estava entre estes prisioneiros. Jara já era um artista de renome no teatro e na música, com oito discos gravados. Sua atuação devotada às causas sociais e a proximidade com o governo de Allende, entretanto, foram fatais. Foi barbaramente torturado e teve seus dedos das mãos todos quebrados em um gesto de simbologia macabra de que não iria mais tocar. Na sequência foi metralhado e seu corpo encontrado com mais de quarenta perfurações de bala.

Esta violência desmedida dá a ideia de quanto a cultura e as artes são ameaçadoras para regimes ditatoriais ou de cunho autoritário. É impossível não fazer um paralelo com a nossa ditadura e lembrar de nossos artistas perseguidos, exilados e censurados, como Geraldo Vandré, Chico Buarque ou Caetano Veloso. Ou não pensar na pauta recorrente de combate à cultura e seus agentes promovida pelo governo atual, desde a campanha eleitoral. O fato de o novo presidente da Funarte difundir teorias malucas, como aquela em que coloca os Beatles e Elvis como comunistas trabalhando para destruir o capitalismo, nos demanda posicionamento firme e vigilância, muito além do desprezo e chacota do primeiro instante.

Outra lição que tiramos é a de que a truculência não consegue calar a arte. Victor Jara e sua música retornam em um momento crucial para os chilenos e “Para não dizer que não falei das flores”, de Vandré, foi cantada mesmo no auge da ditadura. Ditadores passam para o lixo da história como merecem, enquanto grandes artistas são celebrados geração após geração. Porém, como diz a música, “é preciso estar atento e forte”. De tempos em tempos aparecem forças para combater as artes, sempre empunhando uma falsa bandeira de moralismo ou em uma suposta defesa da “beleza da arte verdadeira”. Desconfie. E conheça a obra de Victor Jara, que pode ser encontrada nas principais plataformas de streaming.

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