Conhecendo a APAC de São João del-Rei

Um lugar onde se cultiva esperança e resgata o ser humano


André Eustáquio


Novo prédio da APAC de São João del-Rei. A instituição completou 10 anos na cidade (Foto André Eustáquio)

No Brasil, quando se pensa em presídio, logo vem a imagem de um lugar repugnante – corredores escuros e úmidos, presos amontoados em celas sujas e frias; um ambiente sob a tutela do Estado, mas onde a violência entre facções do crime pode explodir a qualquer momento. Diante dessa triste realidade do sistema prisional brasileiro, é possível imaginar um lugar onde os condenados pela Justiça ficam com as chaves das celas e podem cumprir suas penas dignamente? Sim, esse lugar existe e está muito próximo de nós.

No dia 25 de julho, o Jornal das Lajes foi recebido na APAC (Associação de Proteção e Assistência aos Condenados) de São João del-Rei, que no dia 27 de junho último completou 10 anos. Logo que passamos pelo portão de entrada, aberto por um dos recuperandos, fomos surpreendidos pela organização e beleza do lugar. Jardins planejados e bem cuidados, horta que cultiva plantas ornamentais, verduras e legumes para o sustento da casa, capela, oficinas de artesanato e marcenaria, serralheria, pocilga, criação de codornas e galinhas. Em cada canto vimos pessoas trabalhando para que tudo funcione e produza. O trabalho, além de ser uma importante ferramenta na recuperação dos recuperandos, é uma atividade profissionalizante.

Na recepção do Centro de Reintegração Social Franz de Castro Holzwarth, nos aguardava o fundador e presidente da APAC de São João del-Rei, professor e ex-deputado estadual Antônio Carlos de Jesus Fuzatto. A conversa com Fuzatto começou com uma breve explicação sobre o surgimento da APAC em 1972, em São José dos Campos (SP). Fuzatto destacou também a APAC de Itaúna, pioneira em Minas Gerais. Hoje, o Estado conta com 50 APACs, levando adiante o sonho e o projeto humanitário do fundador da APAC, Mário Ottoboni.

 

Trabalho, espiritualidade e educação

“Aqui é proibido ficar à toa”, disse Fuzatto. A rotina dos 200 recuperandos da APAC de São João del-Rei, homens e mulheres, começa bem cedo. Os recuperandos do regime semiaberto interno podem sair para trabalhar nas diversas oficinas da APAC; já os recuperandos do regime semiaberto externo saem para trabalhar na cidade e retornam no final da tarde. “Todos têm que respeitar as regras e os horários. A qualquer falha, o juiz pode determinar a volta ao presídio”, explicou o recuperando Wellington da Silva Paixão, 28 anos.

Wellington cumpria pena no Presídio Regional (Mambengo) e no dia 1º de julho de 2014 chegou à APAC, por decisão do juiz responsável pela Vara de Execuções Penais da Comarca de São João del-Rei. Ele hoje é recuperando do regime semiaberto externo e funcionário da APAC, ajudando na disciplina das oficinas. Wellington nos acompanhou em nossa visita, mostrando-nos todas as dependências da APAC.

Wellington Paixão conhece bem o Método APAC e fala com desenvoltura sobre os 12 passos desse modelo que, segundo as estatísticas, recupera mais de 80 % dos que cumprem pena na APAC. “Você não tem ideia do que significa para a nossa família quando a gente vem para a APAC. Nossos pais se sentem aliviados, pois sabem que aqui somos tratados dignamente, estamos seguros e eles podem nos visitar”, disse Wellington.

Além do trabalho e da presença da família, o estudo e a espiritualidade fazem parte do método de recuperação. Na APAC, os recuperandos têm a oportunidade de fazer o ensino médio e curso superior à distância. Wellington concluiu o ensino médio e está cursando Filosofia, a distância, na UFSJ.

As salas de aula estão em praticamente todos os lugares da APAC. Nas salas de convivência e nos refeitórios, há quadros-negros e esses espaços são também salas de aula. Nas paredes há cartazes com mensagens de estímulo à boa convivência, destacando a liberdade, o conhecimento e a espiritualidade. Os recuperandos têm também acesso a livros e DVDs disponíveis na biblioteca da APAC.

 

Metodologia

Na metodologia da APAC, os recuperandos seguem 12 passos que têm como alicerce a disciplina, a parceria e o voluntariado. “Todo ser humano é maior do que o seu erro”, ensina Wellington Paixão. Fuzatto complementa: “Costumo dizer que aqui entra o homem. O delito fica do lado de fora.”

Dentro da APAC não se veem algemas, agentes armados e presos uniformizados. Quem cuida da disciplina são os próprios recuperandos, que na APAC não são chamados de presidiários. “Eles têm a chave das celas, se quiserem fugir eles fogem”, diz Fuzatto. Mas a disciplina é seguida à risca. “Aqui há celas com grade para o recuperando ter sempre consciência de que ele está cumprindo pena”, explica Wellington. De acordo com Fuzatto, o índice de fuga é de quase zero.

Na APAC de São João del-Rei, apenas dois funcionários cuidam da segurança. Em cada regime (fechado, semiaberto interno e semiaberto externo) existe o CSS (Conselho de Sinceridade e Solidariedade), responsável pelo cuidado da disciplina, para o qual é eleito um presidente. Wellington já foi presidente do CSS. “No CSS existe um pacto de confiança para que as regras sejam cumpridas”, diz Wellington. Os recuperandos cuidam da limpeza das celas, que são rigorosamente organizadas e limpas. Nas camas beliches, os cobertores precisam ser dobrados perfeitamente e o travesseiro disposto sobre os cobertores; os banheiros são limpos e enxugados após o banho de cada ocupante das celas. “O recuperando precisa ter em mente que após ele tomar banho, outro irá usar o banheiro. Portanto, é preciso estar enxuto”, esclareceu um dos recuperandos do regime fechado.

 

APAC feminina

Aos 19 anos, Eliete Leite de Cavalcanti conheceu um rapaz que a levou para a criminalidade. Aos 20 anos, ela foi presa em flagrante e condenada a cumprir uma longa pena de 27 anos e 7 meses de prisão por associação ao tráfico. Ao ouvir a sentença, Eliete logo sentiu a triste realidade de que passaria grande parte da sua juventude atrás das grades.

Quando chegamos ao prédio da APAC feminina, inaugurada em março deste ano, Eliete Leite nos esperava para conduzir nossa visita às dependências do regime fechado, onde ela cumpre sua pena. Logo que entramos, nos surpreendemos com a organização e com a beleza do jardim interno. Mais parecia um colégio interno do que um local onde presas cumprem penas. Uma bela escultura em pedra sabão, feita por Mateus, recuperando do sistema APAC, embeleza ainda mais o jardim, cuidado pelas recuperandas. A APAC feminina de São João del-Rei tem capacidade para 80 internas e é a única no Estado de Minas Gerais que abriga presas do regime provisório, ou seja, que ainda não foram julgadas.

Enquanto visitávamos as dependências do regime fechado, Eliete, atual presidente do CSS, nos contava a sua história. Ela é natural de Belo Horizonte, mas desde 2011 quis cumprir sua pena em São João del-Rei, pois achara que a cidade seria ideal para uma mudança radical de vida. “Eu quis mudar de vida”, conta ela, que concluiu recentemente o ensino médio na escola estadual da APAC. Aos 36 anos, Eliete é otimista e tem planos para o futuro: “Eu pretendo estudar filosofia e teologia”, revela a recuperanda, que cativa pela simpatia e pela eloquente capacidade de comunicação.

 

Partilha

Terminamos a nossa visita à APAC de São João del-Rei partilhando com os recuperandos do regime fechado um delicioso jantar. Foi uma tarde de descobertas. A APAC nos mostrou que existem meios para recuperar cidadãos que, num momento da vida, escolheram enveredar-se pela criminalidade. Conhecemos um local onde o trabalho, a educação e a espiritualidade são levados a sério na (re)construção da pessoa humana – independente do crime que tenha cometido.

Após o jantar, os recuperandos do regime interno nos aguardavam no auditório. Foi um momento muito especial. Ouvimos agradecimentos sinceros e mensagens bonitas. Cantamos e rezamos juntos. Ao agradecer a boa convivência daquela tarde especial, não havia outra mensagem a transmitir a eles: lutem pela dignidade e pela liberdade!

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