Estátua de padre Antônio Vieira, “Imperador da língua portuguesa”, vandalizada em Lisboa


Cultura

José Venâncio de Resende0

Estátua de padre Antônio Vieira, em Lisboa.

Definido pelo poeta Fernando Pessoa “Imperador da língua portuguesa”, considerado por alguns como “escravagista seletivo” ou apologista da escravatura. O jesuíta português padre Antônio Vieira tornou-se uma das vítimas do movimento global – espécie de ajuste de contas com os símbolos do colonialismo e do escravagismo – que surgiu na esteira dos protestos antirracistas desencadeados pela morte do afro-americano de 46 anos, George Floyd, em 25 de maio, em Minneapolis (Minnesota), nos Estados Unidos, depois de um polícia branco lhe ter pressionado o pescoço com um joelho durante cerca de oito minutos. O movimento ficou conhecido como “Não consigo respirar”.

A estátua de Vieira com três crianças índias, no Largo Trindade Coelho, ao lado da Santa Casa de Misericórdia e da Igreja de São Roque, em Lisboa, onde ele pregava, foi vandalizada na tarde de quinta-feira (11) com a palavra “descoloniza” escrita em tinta vermelha. O monumento, projeto do escultor Marcos Fidalgo, representa Vieira em missão numa aldeia indígena. A Câmara Municipal de Lisboa já providenciou a limpeza da estátua.

Missionário, diplomata e grande escritor, Vieira viveu há 400 anos e foi ousado para o seu tempo. Suas peças de oratória “muitas vezes contrariavam o pensamento da época, diz o historiador e estudioso de sua obra José Eduardo Franco, em entrevista à TVI portuguesa. “É espantoso que tomem Vieira como racista e como símbolo do racismo contemporâneo.”

“Se lermos as obras de Vieira, encontramos textos que são profundamente antirracistas”, acrescenta Franco que coordenou, junto com outros especialistas, a publicação de toda a obra do jesuíta. “Eu recordo um (texto), que aconselhava que fosse lido, que é o Sermão 20 do Rosário. Alguns desses temas que ele pregou causaram tanto impacto que os senhores do poder do tempo o ameaçaram de morte e, por vezes, ele teve mesmo que fugir das tentativas de assassinato. Ele realmente foi uma pessoa de coragem extraordinária na crítica às condições laborais dos escravos.”

Franco lembra, ainda, que o padre Antônio Vieira era movido por um projeto de um mundo muito melhor. “Ele idealizou ao mesmo tempo a construção de um mundo novo, um mundo melhor onde todos tivessem lugar”.

Além disso, Vieira teve um trabalho político importante, de acordo com o historiador Jaime Nogueira Pinto. “Ele fez uma espécie de diplomacia ao serviço do rei D. João IV por toda a Europa”. Pinto cita como exemplo a negociação com a Holanda para o regresso a Portugal dos judeus cristãos novos, grupo que tinha sido perseguido na época, “a troco deles financiarem uma grande companhia, tipo Companhia das Índias Orientais.”

Franco reconhece que Vieira é passível de críticas esclarecidas pelos sermões que pregava. “Apesar de ele idealizar nos seus textos uma sociedade sem escravatura, ele acaba por considerar que a escravatura era um mal menor, um mal necessário naquele tempo, mas que desejavelmente deveria ser ultrapassado. Os aspectos menos positivos, devemos reconhecê-los, criticá-los, mas não devemos deitar fora a água suja e o bebê ao mesmo tempo.”

Em Portugal, o padre Antônio Vieira é estudo obrigatório nas aulas de português no 11º ano, por isso é conhecido pelos alunos. “Ensino o padre Antônio Vieira como um grande escritor, um grande orador, um mestre da língua portuguesa”, diz a professora Margarida Pacheco de Amorim. “Um autor que está nas bocas do mundo e que deixou centenas de sermões com críticas sociais de forte impacto tanto no século XVII como hoje.”

Churchill

Na dúvida em relação às próximas manifestações, as autoridades britânicas resolveram cercar com paineis de madeira a estátua de Winston Churchill, em Londres, para proteger o monumento contra atos de vandalismo. É que representantes de alguns movimentos antirracistas anunciaram a intenção de se concentrarem ao pé da estátua do herói nacional, onde a palavra racista foi escrita no fim-de-semana passado.

Há uma semana, os protestos contra a violência policial e o racismo nos Estados Unidos atravessaram o Oceano Atlântico e chegaram ao Reino Unido. Na capital britânica, milhares de pessoas saíram às ruas e estátuas de figuras associadas à escravatura (colonizadores, traficantes e donos de escravos) começaram a ser vandalizadas.

No mesmo domingo, manifestantes derrubaram a estátua de Edward Colston, um comerciante de escravos do século XVII, e a atiraram às águas do porto de Bristol. O monumento foi recuperado pelas autoridades locais para que possa ser colocado num museu.

A fúria dos ativistas nunca mais parou. Os movimentos antirracistas pretendem acabar com as injustiças raciais que as minorias enfrentam também na Europa. Na Bélgica, a estátua do rei Leopoldo II também foi vandalizada.

Muitas estátuas estão sendo retiradas, outras policiadas e mesmo protegidas dos atos de vandalismo. A estátua do escravagista Robert Milligan (que tinha 526 escravos quando morreu em 1809) foi retirada pelas próprias autoridades da frente do Museu de Londres, atendendo a uma petição popular.

Já a estátua do fundador do escotismo Robert Baden-Powell, em Poole, no sul da Inglaterra, será temporariamente removida após ter sido identificada como potencial alvo de militantes antirracistas. Críticos condenam as suas opiniões racistas, homofóbicas e de simpatia pelo regime nazista.

Colombo

De volta aos Estados Unidos, estátuas do descobridor Cristóvão Colombo foram vandalizadas em várias cidades. Ele é apontado por muitos como um dos responsáveis pelo genocídio dos povos indígenas e também por ter defendido a escravidão.

Em Boston (Massachusetts), foi decapitada a estátua do navegador que ficava em um pedestal no parque Cristóvão Colombo, centro da cidade. Já em Richmond (Virginia) um grupo derrubou a estátua de Colombo que ficava no parque Byrd. As pessoas enrolaram o monumento em uma bandeira, atearam fogo e jogaram dentro de um lago. E no Minnesota uma estátua foi desalojada de um pedestal pelo movimento indígena.

A polêmica das estátuas chegou ao mundo político. Em Washington, a presidente da Câmara dos Deputados, Nancy Pelosi, pediu que fossem retiradas do capitólio as 11 estátuas de figuras dos confederados (seis estados agrários e escravagistas do Sul dos Estados Unidos que se uniram em 1861 contra o abolicionista Abraham Lincoln). Entre as estátuas estão as de Jefferson Davis, escolhido o primeiro presidente confederado, e de Alexander Stephens (vice-presidente confederado e governador da Geórgia), que cometeram traição contra os EUA, segundo Pelosi.

Ainda no Reino Unido, a estátua do imperialista Cecil Rhodes, na Universidade de Oxford, e a estátua do fundador da polícia britânica Robert Peel, na praça central de Manchester, são alvo de controvérsia.

Em Edimburgo (Escócia), considera-se a possibilidade de se colocar uma placa de informação junto à coluna onde está a estátua do político Henry Dundas, criticado pelo seu papel no atraso da abolição da escravatura no século XVIII.

Já a Universidade de Liverpool decidiu mudar o nome de um edifício dedicado ao antigo primeiro-ministro William Gladstone devido às suas ligações ao comércio de escravos.

Em outros países, como Holanda, República Checa, Nova Zelândia e África do Sul, figuras históricas polêmicas enfrentam a reprovação de ativistas do século XXI.

Brasil

Já aparece nas redes sociais um movimento pela derrubada da estátua do bandeirante Borba Gato, situada no bairro de Santo Amaro, em São Paulo, diz em seu facebook o jornalista e escritor Laurentino Gomes. “Sou contra. Estátuas, prédios, palácios, museus e outros monumentos são parte do patrimônio histórico. Devem ser preservados, entre outras razões, como objetos de reflexão sobre a história do Brasil. Genro de Fernão Dias Paes Leme, Manuel de Borba Gato fez fama e fortuna na segunda metade do século XVIII percorrendo os sertões brasileiros à procura de indígenas para escravizar. Era também um fugitivo da lei e contrabandista de ouro.”

A estátua de Borba Gato tem dez metros de altura e vinte toneladas de peso. Segundo Laurentino Gomes, “é feia que dói. Ainda assim, deve lá ficar. Mas, ao passar por ela, as pessoas precisam saber quem foi o personagem e como foi parar no panteão dos heróis nacionais”.

Com as redes sociais, protestos antirracistas multiplicam-se por todo o mundo numa velocidade sem precedentes, resultando muitas vezes em confrontos e violência.

Fontes:

Euronews Português, TVI24, RTP Notícias, SIC Notícias e BBC Brasil.   

 

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