A família Resende faz parte da história da medieval cidade de Trancoso (distrito da Guarda, região Centro de Portugal), não apenas porque D. Pedro Afonso Viegas, neto de D. Egas Moniz - judeu e primeiro Resende – foi tenente na localidade em 1184 como também porque a comunidade judaica está presente em Trancoso desde o reinado de D. Pedro I (1357-1367).
Diversos estudos e, sobretudo, a tradição no Norte de Portugal indicam que D. Egas Moniz – aio ou tutor de D. Afonso Henriques entre 1128 e 1146 - era judeu e, aliás, teria exercido influência sobre o primeiro rei de Portugal na sua tolerância e ajuda aos judeus, revela o jornalista José Levy Domingos. A existência de judeus em Portugal, muito antes do nascimento do Reino no século XII, já pode ser comprovada graças a estudos das últimas décadas, de acordo com o historiador Jorge Martins (Breve História dos Judeus em Portugal, Nova Vegas, Lisboa 2013). “Na verdade, os mais antigos vestígios judaicos encontrados em território português estão datados do século I d.C., através de um conjunto de moedas encontradas perto de Mértola no ano de 1968”, diz Martins com base em estudos de Armando Silva e Rui Centeno.
O médico português e Prêmio Nobel de Medicina (1949), Antonio Egas Moniz, cujo nome original era Antonio Caetano de Abreu Freire de Resende, talvez seja o mais conhecido descendente de D. Egas Moniz. Num trecho da autobiografia "A Nossa Casa", o médico escreve sobre D. Egas: "A família, do lado de meu pai, tinha prosápias de fidalguia pelos Resendes, Sás, Abreus, Freires, Valentes, Almeidas, Pinhos... eu sei lá! um nunca acabar de ascendências ilustres a que as pessoas de idade se referem com devoção (...) Ora, como os Resendes, segundo autoridades na matéria, provêm de Egas Moniz, aio de Dom Afonso Henriques, que, pela sua numerosa prole, deixou descendentes para repartir por todas as velhas casas do Norte, resolveu meu padrinho, Rev. Caetano de Pina Rezende Abreu Sá Freire, substituir o Rezende pelo apelido mais pomposo do ascendente Egas Moniz."
Mas a presença da comunidade judaica em Trancoso é confirmada por documentos apenas no reinado de D. Pedro I (1357-1367), relata o mural na parede do Centro de Interpretação da Cultura Judaica Isaac Cardoso, inaugurado em 2012. Em 1439, o rei D. Afonso V concedeu a esta comunidade "todas as graças e privilegios e liberdade". Com esta "proteção", a comunidade aumenta substancialmente durante o século XV, tornando-se mais numerosa. Em 1481, D. João II autorizou a ampliação da sinagoga, desde que "... a não façam preciosa, rica nem sumptuosa...".
Mas em 1496, prossegue o mural, D. Manuel I decretou a expulsão de judeus e muçulmanos do Reino. Muitos partiram, mas a esmagadora maioria foi convertida, através de um batismo forçado, no porto de Lisboa. Os judeus tornam-se, assim, cristãos-novos. Com o filho de D. Manuel, chega a Portugal o Tribunal da Santa Inquisição, começando um período negro na história do país, marcado pelo desaparecimento das suas comunidades judaicas e pela perseguição, tortura, prisão e morte de muitos cristãos-novos, acusados de preservarem a sua religião anterior.
O Centro de Interpretação da Cultura Judaica Isaac Cardoso foi criado para relembrar a antiga comunidade judaica no município de Trancoso. O homenageado foi médico, escritor e filósofo, nascido nesta região em 1604. Pertencia à família cristã-nova e viveu grande parte de sua vida na Espanha. Mais tarde, foi para a Itália, onde, longe da inquisição ibérica, voltou a assumir-se como judeu.
Em agosto de 2013, o Centro Judaico recebeu de volta um rolo da Torá – Livro Sagrado -, pouco mais de 500 anos após a expulsão dos judeus, decretada pelo rei D. Manuel I em 1496 (com possibilidade de permanecerem no país desde que se convertessem ao catolicismo). O livro (primeira publicação impressa em Portugal) foi trazido de Israel. A Torá encontra-se na Sinagoga Bet Mayim Hayim, no interior do centro judaico no antigo bairro judeu.
O jornalista José Levy Domingos pertence à comunidade judaica portuguesa e foi um dos “impulsionadores” da Sinagoga de Trancoso, onde pretende implementar suas atividades de forma mais ativa. Ligado a rádio e TV e às agências noticiosas portuguesas ANOP e LUSA, foi correspondente no Brasil, tendo residido em Belo Horizonte. Investigador e historiador, José Levy define-se como “masorti” (liberal) e secular.
Muralhas medievais
Traços da época ainda estão vivos na cidade, cujo centro histórico é rodeado por fortificadas muralhas medievais e por um castelo que ostenta a bandeira portuguesa. Bem conservados, encontram-se ainda monumentos nacionais como as igrejas de São Pedro e da Misericórdia, na mesma praça do Pelourinho, e marcas da presença judaica, como a Casa do Gato Preto. "Diferentes gentes se cruzaram em Trancoso, entremearam estórias e história", sintetiza Maria Antonieta Garcia ("Forais de Trancoso", Câmara Municipal de Trancoso, 2010).
"Visitar Trancoso é reviver a História de Portugal", diz um impresso distribuído ao turista logo na chegada. "Foi terra de fronteira, palco de diversas lutas e batalhas marcantes para a formação e independência do reino." Por isso, sempre recebeu o carinho dos reis e importantes privilégios. "D. Afonso Henriques concede-lhe a Carta de Foral (documento de aparência legal que revela quadros de vida de uma vila antiga, ao refletir uma realidade) e D. Afonso III a Carta de Feira (Trancoso era famosa por sua feira medieval, que comercializava produtos diversos, em épocas de fartura e de festividade religiosa). D. Dinis manda construir as muralhas que ainda hoje protegem um burgo onde conviveram cristãos e judeus."
"Em Trancoso, o castelo fora cenário de múltiplas lutas entre mouros e cristãos, durante a Reconquista Cristã", segundo Maria Antonieta. O Reino de Portugal seria fundado em 1139, durante a reconquista cristã, a partir do Condado Portucalense, nascido entre os rios Minho e Douro.
Em 960, prossegue Maria Antonieta, o castelo fora doado ao mosteiro de Guimarães por D. Flâmula Rodrigues, então dona de dez castelos. Em 1073, estava na posse dos cristãos; em 1097, integrou o dote de casamento de D. Teresa com D. Henrique, fundadores do Condado Portucalense. Doado a Afonso Henriques, em 1128, a vila continuaria disputada.
Em maio de 1140, o chefe mouro Abul Hassan invadiu o Condado Portucalense, ao vingar a derrota infligida pelos cristãos, em Ourique, um ano antes. "Em junho de 1140, em dois combates, chefiados por Afonso Henriques, os mouros serão desbaratados junto a Trancoso. O restauro da vila inicia-se e a população concentra-se na cidadela." Também houve tentativas de "ocupação almóada" (dinastia religiosa bérbere ou de povos mouros do norte da África), cuja primeira incursão chegara até Trancoso em 1155. A insistência dos mouros em apoderar-se de Trancoso devia-se ao fato de que, pela sua localização geo-estratégica, representava "uma barreira para a passagem para o Vale do Douro". "A localidade será definitivamente reconquistada por D. Afonso Henriques, em 1160, que a manda fortificar".
Foi no contexto da necessidade de consolidar a "Reconquista Cristã" - prossegue Maria Antonieta - que D. Afonso Henriques, presumivelmente entre 1173 e 1185, outorgou o primeiro foral a Trancoso. O texto foi confirmado por D. Afonso II em 1217. "O original, em Latim Bárbaro, encontra-se na Torre do Tombo (em Lisboa). Concedido aos povoadores do concelho [câmara municipal] e aos que viessem povoar Trancoso, contém normas de convivência e de governo."
Antigo e moderno
Voltando ao impresso distribuído aos turistas, no interior da cintura de muralhas que rodeia a antiga vila medieval e concentra o vasto patrimônio arquitetônico civil e religioso, "mantêm-se vivas também, agora com traços de modernidade, as antigas tradições comerciais, como o famoso mercado semanal, a secular feira de S. Bartolomeu, a feira anual de Sta Luzia, a jovem feira do Fumeiro." A história de Trancoso é pontuada por figuras célebres e lendárias (Bandarra, Magriço e João Tição), marcas da presença da comunidade judaica, a doçaria conventual com as sardinhas doces, a recriação do casamento real na Festa da História, vasta paisagem natural e o "frio majestoso do sincelo" (gotas de águas congeladas e suspensas dos beiras de telhados e árvores etc.).
O maior afluxo de turistas a este município de 9,88 mil habitantes, localizado na subregião da Beira Interior Norte, ocorre no período do inverno, segundo o proprietário de um restaurante local. Já no verão acontece a maior concentração de imigrantes que vão visitar a "terrinha".