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“Ridiculus mus”

13 de Dezembro de 2009, por Rosalvo Pinto

Aquela tinha sido uma semana difícil. Muito trabalho. Trabalho duro, noturno e nada de pagamento por hora extra. Entrar e sair de buracos apertados e escuros. Pelejar dentro de tubos de esgoto fedorentos. Risco constante de acidentes: qualquer cochilada, morte certa. Tudo isso a troco de um miserável prato de bóia.

Era sábado de manhã. Ele voltava do trabalho para casa, mas antes passou pela banca e comprou um jornal, daqueles baratinhos, 0,25 centavos, que todo mundo pode comprar. Até porque não sabia ler direito. A idade também já não ajudava. Dava pra ler apenas títulos e manchetes, o suficiente pra saber o que rolava pelo mundo, descansando lá no submundo onde morava. Começou pelas chamadas da capa. “Bandido assaltou e matou casal”. “Quadrilha fez arrastão em condomínio de luxo em São Paulo”. “Assaltantes de banco matam segurança e fogem”. “Ladrões roubam carro e arrastam criança por cinco quilômetros pelas ruas do Rio”. Cruz credo, só desgraça, murmurou horrorizado Dom Ratão.

Isso não é nada, pior do que isso é sermos sistematicamente perseguidos pelos humanos, pensou revoltado Dom Ratão, ao ler no jornal, com dificuldade, que 80% do código genético do rato tem semelhança com o dos homens. Não entendo muito disso, resmungou, ao ver a foto de um ratinho branco no jornal, mas dá para sacar que devíamos ser mais bem tratados. Somos quase iguais a eles. Isso aumenta nossa revolta.

Mais adiante, numa propaganda, ele se lembrou de dois sujeitos intragáveis: Hanna e Barbera. Sabia que esses caras tinham ficado bilionários às custas de sua raça. Inventaram milhares de estorinhas nas quais um representante de sua gente, um tal de Jerry, um dos protagonistas, estava sempre roubando e apanhando. De vez em quando, passando lá pelas beiradas do teto do cinema, ele via seus irmãos em apuros lá num pano branco grande. Sacanagem, ele pensou. Escarrapachados nas poltronas, esse povo fica comendo pipocas e dando gargalhadas às nossas custas.

Na página seguinte, outra notícia, em letras grandes, chamou-lhe a atenção: “Ladrões no Senado: Sarney é acusado de 11 falcatruas”. Esses tais de humanos são interessantes: eles roubam, roubam, até matam para roubar e ainda usam o nosso nome como sinônimo de “ladrão”. “O deputado fulano é um rato: roubou dinheiro do orçamento”. Chegaram até a inventar um verbo com nosso nome: “Precisamos urgentemente desratizar o Congresso”, leu mais adiante. É o cúmulo da maldade.

Nós não roubamos nada. Simplesmente buscamos o que comer, pensou, lembrando-se da tal da lei da sobrevivência das espécies. Que eu saiba, nunca, nunca mesmo, assassinamos alguém para roubar alguma coisa. Uma vez, lá do meu buraquinho atrás do armário da cozinha, escutei um humano falando com o outro: “quem rouba de ladrão tem cem anos de perdão”. Daí fiquei pensando: que moral têm esses humanos para nos representar como símbolo da ladroagem?

E por aí vai o desprezo para conosco. De vez em quando ouço um humano dizer a outro: “você parece um rato de sacristia”, ou, “aquela mulher parece um rato de laboratório”. Ah!, e por falar em laboratório, vem o pior: somos os eternos cobaias de uns homens chamados pesquisadores. Estão sempre nos prendendo em gaiolas e, na televisão, aparecemos sempre sendo espetados por uma seringa. É nossa sina. E os instrumentos de tortura que inventaram para nós: a ratoeira, os venenos, o tal do chumbinho? E ainda gozam de nós: “aquele político caiu numa ratoeira”, como se não bastassem essas geringonças inventadas para nos matar.

Nosso sofrimento não tem limites. Para quando somos pequenos inventaram um nome horroroso: “camundongo”. Nos últimos tempos, nosso nome virou uma geringonça esquisita que trabalha o dia inteiro apertado na mão dos homens e, ainda por cima, de graça: “mouse”. Até no latim clássico nosso nome já era feio: “mus”, do qual, eu acho, os ingleses derivaram o “mouse”. Isso é nome a ser dado a alguém? A propósito, uma coisa pior ainda. Nosso nome foi sempre usado para fazer as piores comparações. Dizem que um famoso poeta romano, um tal de Horácio, falando de alguém que promete uma grande obra e acaba produzindo uma porcariazinha, saiu-se com essa (desculpem-me, tenho que falar primeiro em latim, depois traduzo...): “Parturient montes, nascetur ridiculus mus” (as montanhas vão parir e vai nascer um ridículo rato). Um absurdo, e logo numa de suas obras mais importantes, a “Arte Poética”. Essa não!

Enfim, rato, camundongo, “mus”, ou “mouse”, encerrou suas elucubrações Dom Ratão, podem nos chamar de qualquer coisa. Estamos lixando para isso. Mas, pelo amor de Deus, não nos comparem e não nos confundam com aquele povinho lá de Brasília. Uma vergonha, esses humanos: roubando, sobretudo dos pobres, e escondendo dinheiro em cuecas e meias, credo! Seria o fim da nossa raça!

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