O título é esse mesmo. E não “Eu e a cocota”. A cocota vem primeiro, pois é a principal personagem desta crônica.
A propósito, não sabia nada sobre a origem do termo “cocota”. Corri ao “pai dos burros” e levei um susto. O Aurélio não registra “cocota” como sendo aquela ave de porte médio, verde brilhante, bico afiado e perigoso, que costuma falar. Nasci e fui criado sempre ao lado de uma cocota, ouvindo todo mundo dizer: “prrrrr, dá o pé, cocota!”, pois minha mãe sempre gostava de ter uma cocota ou um papagaio. Será que o Aurélio não sabia disso? Recorri à internet e... nada de animal. Aurélio e internet só conhecem uma outra “cocota”!
Segundo o doutor Wikipedia, “Vem do francês “cocotte”, que é uma caçarola de perfil baixo, que acabou sendo sinônimo de jovens francesas em férias no balneário de Saint Tropez, que se exibiam em calças jeans justas coladas ao corpo, com a cintura recortada bem abaixo do convencional, copiada por estilistas de moda, décadas depois, que seria conhecida como ‘calça cocota’”. Ou “calça Saint Tropez”. Isso foi lá pelas décadas de 60 e 70. Corresponderia hoje aos termos gatinha, periguete etc. Meninas e mocinhas bonitinhas, patricinhas, metidinhas e... haja “inhas”.
Corria o ano de 1952. O Góes meu pai era fiscal “pé-de-chinelo” da prefeitura de Resende Costa. Uma merreca de salário, sempre atrasado, caderneta sempre dependurada no “negócio” do Chiquito Vale, casa precisando de reforma urgente, filhos pra criar, uma ladainha de problemas. Resolveu tirar férias-prêmio de seis meses e mudar para São João del-Rei com a família. Com ajuda de lá e de cá conseguiu dois empregos: marceneiro durante o dia no Colégio Santo Antônio e guarda-noturno da fábrica de tecidos São João, na vila Santa Teresinha, durante a noite. Eu estava no quarto ano primário e tive que deixar o Grupo Escolar Assis Resende no meio do ano e terminar o primário no Tomé Portes del-Rei, de São João.
Éramos quatro filhos, eu o mais velho. Para nós, mudar, ainda que para uma casa muito ruim, pequena e de chão batido, era a coisa melhor do mundo. Imagine! Morar em São João del-Rei, uma glória! E lá fomos nós. Numa tarde de julho, o caminhão International KB-7 do Zizi Vale, ao volante o Zé Barbosa e como ajudante o Tio Taca (João de Paiva), saiu roncando lotado pra São João. Mamãe e a Mercês na “boleia” e o resto junto com a desengonçada traquitana na carroceria. Amarrada por cima de tudo, a outra inseparável moradora da casa: uma cocota na gaiola.
Por esse meio tempo eu andava com a ideia de ser padre. Vivia na igreja: o catecismo, coroinha e membro da Cruzada Eucarística. Na vila Santa Terezinha frequentava, nos domingos, o Oratório Festivo dos salesianos. Então fiquei interessado pelo seminário deles. Fim de ano, diploma na mão, já poderia entrar no início do ano seguinte. Tudo acertado, aquela expectativa, surgiu um problemão: e o tal do enxoval? Uma peleja: um presente daqui, um pedido dali, um negocinho qualquer... e a cocota de estimação, coitada, acabou pagando o pato.
Mandaram-me ao mercadinho da cidade para tentar vendê-la, uns cobrinhos a mais. E lá fui eu com a cocota, 10 anos, a pé, imaginem, no poleiro! Três horas de esperança e nada. Era longe e, com um trocadinho no bolso, peguei a jardineira do Narciso, dirigida pelo Janjão. Assentei-me, meio envergonhado, com o poleiro no colo. A cocota, que nunca tinha andado de ônibus, assustada, resolveu aprontar: pulou no chão e sumiu debaixo dos bancos. Aí começou um alvoroço entre os passageiros, alguns levando bicadas nas pernas. Mais envergonhado ainda, rastejei-me pelo chão pra lá e pra cá e nada de pegá-la, correndo por entre as pernas do povo. Com muito custo consegui agarrá-la, aos guinchos agudos e estridentes. Me deu vontade de abandonar o enxoval, o seminário e, dali, fugir e sumir pra Resende Costa.
O padre Duílio Brescia, diretor do Oratório, prometeu uma ajuda. Eu olhava com inveja seus ajudantes, seminaristas de batina preta: os clérigos Hamilton Silva (meu conterrâneo, filho do Sô Zé do Ciro), Moisés Marchesi e José Camargos. Esse último era o músico que acompanhava os cantos nas missas tocando um pequeníssimo harmônio. Tão pequeno que, mais tarde no seminário, fiquei sabendo que ele era chamado de “Zequinha”. Padre Duílio me deu uma tesourinha e dois cortes de brim, daqueles mais ordinários, para os dois ternos exigidos pelo enxoval. Meu pai os levou para o Ticureba, um sobrinho dele, alfaiate lá no Tejuco. Claro que o feitio foi de graça. E pela primeira vez na vida vesti uma calça comprida.
Com meu pai, seis meses depois, aconteceu o que se esperava: não aguentou mais o rojão, trabalhar dia e noite. Saía de casa às seis da manhã, voltava às cinco da tarde, jantava e ia fazer ronda na fábrica até às cinco da manhã. Voltamos para Resende Costa. O mesmo caminhão, o mesmo “chofer”, o mesmo ajudante e as mesmas traquitanas. Dessa vez, ainda por cima, sob uma chuvarada de janeiro. Amarrada no alto, triunfante por ter escapado do enxoval, a gloriosa cocota. Prrrrr... dá o pé, cocota!