No longínquo 1956 eu era seminarista interno no Colégio São João, em São João del-Rei. Estava no antigo 4º. ano de ginásio, 14 anos. Naqueles tempos o estudo do Latim era rigoroso: a disciplina “Latim” acompanhava a gente deste o 1º. ano ginasial, passando pelo colegial, noviciado e ia até o 3º. ano de filosofia.
O padre José Marino Luz era o competente, exigente e temível professor. Era novembro, e ele nos havia passado um conto em latim, de uma página, para ser destrinchado nos mínimos detalhes da gramática latina. E, ainda por cima, todos tivemos que decorá-lo, na ponta da língua. “Aegrotasne?” era o estranho título. Para os que não sabem o que significa, aguardem!
Naquele tempo, nos exames de final de ano havia uma prova escrita e outra oral. Para a prova oral compunha-se uma banca de três professores, tendo como chefe o professor da disciplina.
Era o início de dezembro, a gente suspirando por umas férias, pois os estudos não eram brincadeira. Não podíamos passar as férias com a família. Lembro-me de que só voltei à casa de minha família cinco anos depois de minha entrada no seminário, para passar uns 20 dias, morando, imagine-se, apenas a 36 km de minha terra natal!
Por algum motivo meu pai teve que vir a São João e passou pelo colégio para deixar, na portaria, uma encomenda para mim. Não pôde me ver, pois visitas, até dos pais, só eram permitidas só no primeiro domingo de cada mês, de 14 às 17 horas. O porteiro guardou o embrulho na prateleira e meu pai se foi.
Passados três dias, o porteiro me chamou para pegar o embrulho. Corri à portaria e, só de vê-lo, deduzi, pelas manchas de gordura, que era alguma coisa de comer. Curioso e satisfeito, voltei ao refeitório para o jantar. Naqueles tempos de comida ruim e racionada (éramos uns 250 seminaristas!), qualquer coisinha de comer era bem-vinda. Pelas regras, quem recebia coisas de comer tinha que dividir com os colegas de mesa. Alguns espertinhos, dependendo do volume, davam um jeito de esconder tudo no seu armarinho no dormitório, ao lado da cama. À noite, quando se apagavam as luzes, esses espertos ratinhos roíam seus petiscos debaixo do cobertor, para o assistente não ouvir e tomar o dito cujo. Assim, escapavam de ter que dividir com os colegas. Com o meu embrulho não daria para fazer isso, nem que eu quisesse, pois era razoavelmente grande.
As mesas do refeitório eram retangulares e grandes: 4 de um lado e 4 do outro, assentados em bancos compridos. Nas pontas da mesa, o chefe e o vice-chefe. Cuidavam de ajudar a manter a disciplina e, sobretudo, de servir a comida, para haver uma distribuição justa entre todos. Caso contrário...
Naquele jantar, os comensais da mesa nem sequer prestaram atenção na leitura que se fazia durante parte da refeição. Estavam de olhos grudados no embrulho. Abri, curioso. A surpresa: era um frango assado, recheado de ovos cozidos fatiados e miúdos do frango. Minha mãe era uma especialista em fazer esse prato. Os colegas de mesa arregalaram os olhos de satisfação. Naquele dia podia-se livrar das muxibas de carne de boi, que eram servidas uma vez por semana. Aquele frango significava um banquete. Destrinchado e distribuído, em pouco tempo evaporou-se o presente de minha mãe. Até aí, dada a fome e a novidade, nada de anormal. O castigo viria depois.
Lá pela noitinha, o frango veio mostrar a que veio: diarreia, vômitos, indisposição e dor de cabeça. Aquela foi uma noite de procissão aos banheiros. No dia seguinte, foi preciso transferir quase todos para a enfermaria, dada a gravidade da situação.
Dois dias depois e os companheiros de mesa ainda pálidos, olhos fundos, inapetência e corridas aos banheiros. Para mim, no terceiro dia era o dia do exame oral de latim, pois o exame escrito acontecera antes do desastre gastronômico.
Ainda convalescendo, desci as escadas da enfermaria e entrei na sala de aula para prestar o exame. Lá estavam os componentes da banca, com uma cara de inquisidores. Eu me assentei, sem jeito, envergonhado, sentindo-me culpado por aquela tragédia, sem dizer uma palavra. E o medo de ter que interromper o exame e sair às carreiras da sala?
O presidente da banca esticou uma bolsinha de pano para eu retirar o número do ponto a ser examinado. Tremendo, passei o número ao professor, esperando pelo pior, talvez uma écloga de Virgílio ou uma sátira de Horácio, daquelas bem difíceis.
Alguns segundos de silêncio e de sofrimento. De repente, ouvi a voz do examinador, solene e pausada, como que segurando-se para não rir e quebrar a seriedade daquele momento:
- “Aegrotasne?”. Eu respondi:
- Sim, mas já sarei”. E ele:
- Então, declame!
Eu suspirei, aliviado. Apesar da palidez, dos olhos fundos, da vergonha, de tudo, declamei garbosamente o texto. E ganhei um solene 10. Até que não foi ruim, o frango acabou me salvando do exame oral de Latim. E, como dizemos em Resende Costa: “Assim mesmo teve bão!”.
Ah! Já ia me esquecendo: para os que não sabem, “aegrotasne?”, do latim, significa: “Estás doente?”