Manhã de carnaval de 2009. Percorro a Av. Gonçalves Pinto, a Marquês de Sapucaí de Resende Costa. Toda enfeitada para o carnaval. Largas faixas de pano entrecruzadas, formando um caramanchão de cores. Postes ornamentados multicolormente. Muita agitação, muitos carros e muita gente. Muitas caras desconhecidas. Viro à direita para subir o ... “Beco do Barbusinha”, é o nome que vem à minha já cansada memória. Paro e olho para cima: o piso de bloquete, as casas tão mudadas. O sobrado do Sô Barbusinha e a casa do Iraci do Sobico e Dona Olga ainda conservam um pouco do aspecto de muitos anos atrás. Nos meus tempos de menino o beco era calçado com pedras grandes. Era por ele que os carros de boi, vindos do “largo” de trás da Matriz (hoje a praça Mendes de Resende), desciam para ter acesso à avenida, já calçada de paralelepípedos. Traziam milho, lenha, material de construção. Nas Semanas Santas, traziam uma verdadeira mudança das fazendas, mais as latas com mantimentos e biscoitos. Do lado direito, onde hoje está a casa do Zé Barbeiro, havia somente um portão de madeira, por onde entravam e saíam cavalos e éguas do Nico Cassiano e do Nico de Souza. Logo acima do sobrado do Sô Barbusinha ficava a casa do Zé do Nico. Mais acima, chegando ao fim do beco, a do Sô Geraldo Chaves.
Olhar aquele beco me deu uma sensação estranha e dolorosa. Um misto de saudade e de tristeza pelos pedaços de minha vida que passaram por ali e não voltam mais. Eu me vi menino, dos 6 aos 10 anos. Calça curta com suspensório de pano, pés no chão, cabeça raspada com topetinho na frente, subindo e descendo o beco. Para levar os animais dos dois Nicos ao pastinho do “Pau de Canela” (onde hoje moram o Elmo do Lorinha e o Marquinhos Alves), a troco de uma moeda de um mil réis. Tantas vezes subia para a igreja, para o catecismo, para o serviço de coroinha ou para brincar no “largo”. Os quatro largos eram o nosso habitat preferido: os dois da Matriz, o do Rosário e o larguinho do centro, ao lado da avenida. Era nos largos que a gente brincava, de tudo e, despistadamente, falava das meninas, nossas primeiras paixões. Por segundos, aquele beco me sinalizou o mistério da finitude da vida. Aquilo era o cenário de quase sessenta anos atrás. Subi e desci, imerso nos meus sonhos e medos.
Volto do beco dos meus devaneios e entro na avenida. Ah, a avenida. Ela sempre foi gostosamente assim chamada. Era e ainda é a avenida de todos nós. Viro à esquerda e sigo em direção à esquina de outro beco. Aquele era tão beco que nem nome tinha. Hoje ficou importante e passou a ser “Rua Pedro Alves”, que mais parece uma pista de corrida de carros que sobem e descem sem parar. A entrada do beco era apertadinha, mal podia passar um carro de boi. Começava com um pouco mais de três metros calçados de pedras “pé-de-moleque”. Depois continuava numa espécie de barranquinho raso, no centro, formado pelas enxurradas que desciam abundantes e encachoeiradas. Ali a gente gostava de brincar com a chuva, fazendo pequenas barragens ou colocando barquinhos de papel nas enxurradas. Na nossa percepção de menino, naqueles tempos as chuvas eram mais fortes e abundantes e os raios e trovões mais aterrorizadores. Na escuridão das noites de tempestade, minha mãe queimava ramos secos da Procissão de Ramos e a gente, a cada trovoada e tremendo de medo, implorava: “São Jerônimo e Santa Bárbara!”. Tempos depois, foi preciso meu pai vender um pedaço da velha casa para a Prefeitura abrir a rua. Depois, foi-se também a casa de minha infância e meninice. Na esquina, à esquerda de quem desce, ainda imponente e desafiando os tempos, está o casarão do Sô Zé Lara e da Dona Vera Cruz Resende. Abaixo, noutro casarão que não existe mais, morava o solteirão dentista e seresteiro, o inesquecível Antônio Resende. A horta dessas casas descia até quase o final do beco, até a casa do Tião do Chora e da Adélia, pais do Galo. À direita, nossa velha casa se prolongava num comprido muro de pedra, coberto de saborosas, que se estendia até onde começava a última casa do beco, a do Padrinho Joãozinho do João Franquilim, conhecido também como “Joãozinho sapateiro” ou “Joãozinho dos oclos”. De cima, imaginando o antigo beco, eu tinha a sensação de ainda ver o Tião do Chora, de olhos verdes e penetrantes, sempre acotovelado na janela e espiando o tempo passar.
Como diz um dos meus poetas preferidos, o Manoel de Barros, “o olho vê, a lembrança revê e a imaginação transvê...” Depois de olhar os becos, o de cima e o de baixo, lembrar e imaginar tanta coisa, a gente entra num beco, perigoso e sem saída: o beco da vida. A cidade cresceu, os becos viraram ruas. E a gente se angustia na travessia desse beco, que vai irremediavelmente se afunilando.
Becos e outras reminiscências ...
15 de Marco de 2009, por Rosalvo Pinto