Voltar a todos os posts

Brancas e inesquecíveis lembranças

14 de Dezembro de 2010, por Rosalvo Pinto

Não há dúvidas de que as lembranças dos tempos de criança e de adolescente são as mais perenes e as mais gostosas. Talvez seja porque o ser humano está apenas desabrochando-se para a vida. Tempo dos brinquedos, dos primeiros amigos, das primeiras transgressões, da novidade da escola, da descoberta do amor e da sexualidade. Acima de tudo, tempo de começar a sonhar com o futuro.

Por esses tempos, lembro-me de que o meu tio paterno, o tio Saneco, morava lá no Brumado, onde havia arrendado a fazenda do Maracujá. Era um baixinho trabalhador, incansável. Plantava de tudo e negociava. Gostava de uma mula bonita e bem ajaezada. Brabo feito seus irmãos, da raça do povo da “Chácara”, entre eles o Góes, meu pai. Tia Quiquita, a típica dona de casa, paciente e prendada, exímia cozinheira e forneira, de tempos em tempos colocando mais um filho no mundo. Começando pela Maria, seguindo-se o Dinho, a Adair, a Carmen, a Olga, a Ivone, o Renato (10 dias mais velho do que eu), a Vera, o Mazinho e terminando com o Zé Imar.

Como era costume da época, tio Saneco abriu uma escola rural que funcionava em sua casa. Para isso, mandou para a “vila” a Adair e, tempos depois, a Ivone, para fazerem o primário e voltarem como professoras na roça. Como as duas ficaram por algum tempo em minha casa, quem lucrou fui eu: ganhei algumas férias na fazenda. Primeiro no Maracujá, de onde me lembro de tudo: desde a vaca brava “Paraíba”, o cachorro “Piloto”, em cujo lombo o Renato colocava um cangalhazinha de couro e sola, feita pelo tio Saneco, até a grande roda d’água do engenho, onde se faziam o melado, a rapadura e o açúcar “preto” (mascavo), os torrões de açúcar secando ao sol sobre as esteiras, que a gente tirava escondido, as latas de biscoitos para serem vendidos na festa da capela do Brumado. Não me esqueço da “bola de capota” do Dinho para as “peladas” de tardinha, no gramado em frente à casa, do agregado Zé Maria com seu cavaquinho, das visitas à casa do vizinho “Capitão” e seu enorme tacho de arroz doce, enfim, de tantas e tantas coisas que compunham um mundo mágico para mim. Mundo que nunca mais revi.

Algum tempo depois tio Saneco comprou um terreno com casa na “Floresta” e minhas férias se mudaram pra lá. Um dos pequenos cômodos da casa era a única sala de aula da escola. Menino da cidade, uma novidade, a Adair me pôs para declamar uma poesia na festinha do fim de ano, um sucesso. Lembro-me de ir visitar o velho solteirão Antônio Belena, vizinho que morava num enorme casarão de uma fazenda ali por perto (hoje Fazenda da Floresta). Já no leito, doente, achei engraçado ver uma galinha aninhada no canto, aos pés do seu catre. E dependurada no teto, sobre a cama, a tradicional tábua com queijos.

Passaram-se muitos anos. Dias atrás resolvi rever aqueles lugares, na companhia do Chiquinho, meu irmão. Emocionado, vi a casa, branquinha e bem cuidada, tal como era antes. Apenas dei falta da portinha de acesso à “Vendinha do Saneco”. Era uma tarde bonita, um pouco de sol, algumas nuvens prometendo chuva. Da frente da casa, ouvíamos o barulho das águas da cachoeira, que ainda correm, do mesmo jeitinho, atrás e bem perto da casa. Era o lugar preferido das férias. Senti naquele momento as águas que até hoje escorrem nas pedras de minha memória. Então lembrei-me da azáfama do tio Saneco fazendo polvilho.

O polvilho, tão branca lembrança. Muitos anos depois, quando me apaixonei pelo Guimarães Rosa, um dia dei de cara com o conto “Substância”. Está lá no “Primeiras Estórias”. Em princípio, o título não me dizia nada. Mas, era o Rosa, e eu entrei na estória. A Maria Exita, “na azáfama de farinha e polvilho” apaixonada pelo Sionésio, mas moída de sofrimento pela ameaça da lepra de seu pai, abandonado num lazareto. Transfigurada na brancura do polvilho, na incerteza e na dor. À medida que fui lendo o conto, foi-se criando na minha mente um velho espaço conhecido, no qual passaram a transitar a Nhatiaga, a Tia Quiquita, a Maria Exita, “hesitando” em sua paixão, o tio Saneco e o Sionésio, na tortura de sua incerteza. Tudo ali, atrás da casa, onde se fazia o polvilho. Não conseguia separar a casa do tio Saneco, das brancas e inesquecíveis lembranças de minha infância, do conto do Rosa. Passei até a imaginar que ele teria conhecido a casa branca, lá na Floresta. Só podia ser.

Meus leitores podem estar curiosos em saber como foi o desfecho da estória. Final feliz na vida dos personagens e mais feliz ainda, nas palavras do Rosa:
 
 “Sionésio e Maria Exita – a meios-olhos, perante o refulgir, o todo branco. Acontecia o não-fato, o não-tempo, silêncio em sua imaginação. Só o um-e-outra, um em-si-juntos, o viver em ponto sem parar, coraçãomente: pensamento, pensamor. Alvor. Avançavam parados, dentro da luz, como se fosse no dia de Todos os Pássaros”. Beleza, não?

Deixe um comentário

Faça o login e deixe seu comentário