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“Cai a tarde tristonha e serena ...”

13 de Setembro de 2010, por Rosalvo Pinto

 Assim o primeiro verso da canção-valsa de Erothides de Campos evocava o anoitecer na Resende Costa de 60 anos atrás, unindo a sensação do despertar do amor com as badaladas da Ave Maria.

Não me lembro mais se foi em 1950 ou 1951. Numa tarde, a pacata cidade de então parou, assustada por um som estranho e diferente. Era uma música que invadia os ares no mormaço ensolarado daquela tarde. As pessoas chegavam nas janelas e saíam às ruas, curiosas. Os mais curiosos logo identificaram: era um som que vinha da torre da Matriz. Pe. Nélson e um técnico acabavam de instalar e ligar o primeiro sistema de alto-falantes. E fizeram uma surpresa para os moradores. Duas grandes cornetas, do alto da torre, começaram a difundir, salvo engano, os sons do Hino Nacional. Já naquela tarde, às seis horas em ponto, a melodia suave, delicada e plangente da Ave-Maria de Bonaventura Somma se derramou pelas encostas da cidade e pelos campos adjacentes.

Com o tempo vieram outras Ave Marias, também clássicas, como as de Schubert e de Bach/Gounod, que se alternavam com a primeira. Mas me lembro de que, já nos primeiros dias, ouvíamos a Ave Maria de Erothides de Campos (composta em 1924), misturando as saudades do primeiro amor com as badaladas da Ave Maria. Para nós, meninos, valia a novidade e (por que não?) também a beleza daquela Ave Maria, desde então gravada na minha memória. Para muitos adultos, aquelas palavras podiam doer fundo em seus corações. Vejam:


Cai a tarde tristonha e serena, em macio e suave langor
Despertando no meu coração a saudade do primeiro amor!
Um gemido se esvai lá no espaço, nesta hora de lenta agonia
Quando o sino saudoso murmura badaladas da “Ave-Maria”!

Sino que tange com mágoa dorida, recordando sonhos da aurora da vida
Dai-me ao coração paz e harmonia, na prece da “Ave Maria”!

No alto do campanário, uma cruz simboliza o passado
De um amor que já morreu, deixando um coração amargurado.
Lá no infinito azulado uma estrela formosa irradia
A mensagem do meu passado quando o sino tange “Ave-Maria”.


Na Resende Costa daqueles tempos, tempos de lajes imensas, limpas e abertas, envoltas naquele friozinho aconchegante, era impossível não se emocionar, todas as tardes, com um sentimento de nostalgia e de paz. Quem por lá viveu naquela época, ainda guarda na memória a irradiação saudosa daquelas melodias. Tardes tristonhas e serenas, badaladas da Ave-Maria.

Ao som das Ave-Marias, entrava-se na penumbra da Matriz para a récita do terço, por vezes o rosário completo. Em seguida, rezava-se, pausadamente, uma oração de despedida, longa e comovente. Despedia-se do dia, da igreja e do seu Santíssimo, ali representado pela luz tremeluzente da lâmpada de azeite dependurada no teto. As palavras daquela oração já se esmaeceram na memória. Restam apenas fragmentos de saudade: “... ah, seu fosse aquela feliz lampadazinha, cuja doce e tremente luz, vai arder...” E as pessoas dirigiam-se para suas casas. Nem rádio nem televisão. Apenas conversas, café com biscoito, cama. Desligava-se a energia elétrica e a cidade dormia. E sonhava com a Ave Maria do dia seguinte.

Lembro-me agora de que o primeiro responsável pelo serviço de alto-falantes foi o Nhonhô Caiano. Sempre fazendo seus terços de contas-de-lágrima ou de canafístula, andando pelas ruas, de tarde ele pontualmente subia para a hora da Ave-Maria. Nós meninos, coroinhas, víamos com curiosidade a radiola, aqueles discos pretos e duros, aquela caixinha cheia de pequenas agulhas, grossas e douradas, que eram trocadas com frequência e que acabavam em nossas algibeiras, o imponente microfone em um pedestal. E sempre ríamos quando o Nhonhô, ao final de cada disco, anunciava pomposamente o seu título: “Acabamos de OUVIU, o Hino Nacional!”

Já em 1953 o zeloso Pe. Nélson cuidava de registrar no seu caprichado “Livro do Tombo”, a recomendação de que "os alto-falantes da igreja sejam utilizados exclusivamente para assuntos da paróquia e avisos religiosos, jamais para músicas profanas ou propagandas alheias à vida espiritual da Casa de Deus". Mas, com certeza, ele sabia que a Ave Maria de Erothides de Campos, que emocionava tanto os resende-costenses de então, não, não podia ser profana...

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