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Meu primeiro emprego

10 de Agosto de 2010, por Rosalvo Pinto

 Nós, seres humanos, temos um gostinho especial em nos lembrar, sempre, da realização de algumas ações marcantes de nossa vida. São ações que, de certa forma, determinaram novos valores, novas etapas e direções na vida. Quando temos o cérebro já quase bem (in)formado, ali pelos sete anos, vem, para os cristãos católicos, a “primeira comunhão”. Seguem-se depois outros “primeiros” ou “primeiras”: o primeiro dia de escola, a primeira relação sexual, o primeiro namorico, o primeiro amor, o primeiro emprego, o primeiro carro (e a primeira carteira de motorista), o primeiro casamento etc. Assim, de primeiro em primeira, vamos caminhando para o último...

Meu primeiro emprego, para meu orgulho, tem a ver com a vidinha de Resende Costa de antigamente. Eu nasci e vivi minha meninice num tempo em que todas as casas, na zona rural e na cidade, tinham uma “horta”, na qual havia, além das hortaliças, um pomar mais ou menos sortido, um galinheiro com seus poleiros mais ou menos recheados de galinhas e um chiqueiro, com um porco ou uma porquinha com seus filhotes. Curiosamente, o maior amigo do homem, o cachorro, não tinha muita vez naquele tempo. Pelo menos como tem hoje, quando ele está mudando radicalmente de papel: de serviçal, subordinado, para dono e dominador.

É óbvio que horta, pomar, galinheiro e chiqueiro demandavam mão-de-obra. Sem dúvida que o mais complicado era a manutenção de um chiqueiro. O espaço seguro, o mal cheiro, o trato – para o qual era preciso ajuntar e guardar a tradicional “lavagem” -, o ato de “capar”, tratando-se porco, a perícia para matar e, o que era o pior, a trabalheira para “arrumar o porco”. Matar, chamuscar, abrir em duas bandas e cortas as diversas partes exigia uma perícia incomum. Criar porco dava sempre trabalho e na cidade havia os “tocadores”, os “capadores” e os “matadores” de porco.

Ali pelas cinco das frias madrugadas, em seguida à sinfonia dos galos de todas as casas, a gente acordava, periodicamente, com tenebrosos grunhidos. Eram os gemidos de dor de um pobre suíno, assim que a ponta de um reluzente e afiado punhal, fino e comprido, entrava ali por baixo de uma das axilas e atingia seu coração. Era o sinal, o início de um dia inteiro de trabalho, com a indispensável ajuda de parentes, amigos e vizinhos, além de um ou outro contratado. Pois é, justamente aqui começa a história de meu primeiro emprego. Dos meus sete aos dez anos de idade.

Assim que se ouvia o grito lancinante de morte, vindos de suas tocas nos barrancos e nas árvores da redondeza, começavam a chegar os urubus. Acomodavam-se nas árvores das hortas, à espreita de um vacilo dos envolvidos no trabalho, para dar um rasante e levar alguma coisa. Aí entrava em ação, até o final do dia, a figura imprescindível do “espantador de urubu”, ou do “tomador de conta de urubu”.

No casarão dos meus padrinhos, bem em frente à nossa casa, com frequência se matava um porco. Nico de Souza era fazendeiro graúdo e as bocas a serem alimentadas eram muitas. Os donos da casa, os pais de Sá Donana (o Nico Cassiano e a Sá Amélia) e mais uma meia dúzia de mulheres serviçais. Além das constantes e muitas visitas que por ali passavam e das latas de carne na gordura que eram enviadas a parentes e amigos de outras cidades. A notícia da morte de um porco no dia seguinte já me deixava ouriçado. Pelas seis horas eu já estava no meu posto, de varinha na mão e atento a qualquer movimento no céu e nas árvores. Além do honroso trabalho, ainda ficava livre de ir à escola. Era trabalho de responsabilidade. Almoçava por ali, com um olho no prato e outro nos urubus. No fiel desempenho do meu primeiro emprego, urubu nenhum conseguiu levar algum agrado.

Ao fim da tarde, quando nada mais os atraía, os urubus iam se retirando aos poucos. Com a certeza de que podia deixar o posto, corria a apresentar-me a minha empregadora, para a parte melhor da festa. Sá Donana me levava ao seu quarto, esticava o braço e apanhava, de cima do guarda-roupa, uma lata redonda e grande daquelas de talco, cheias de moedas. Meus olhos brilhavam quando ela colocava nas minhas mãos uma moeda grandona, de um mil réis. O projeto de gastar já rondava minha cabeça ao longo do dia: novas e variadas bolinhas de gude, papel de seda e linha para fazer “estrelas” (assim chamávamos as pipas), uma bola de borracha (a gente se virava com bolas de meia), bombinhas, picolé (coisa rara, que vinha na jardineira de São João del-Rei, em latas cheias de serragem), essas coisas, nossos sonhos de criança.

Cansado pelo exaustivo trabalho, barriguinha cheia, um mil réis na mão, era hora de dormir para, no dia seguinte, ir às compras! Lá no “Negócio do Zé Augusto”. Ainda bem que naquela época não havia o tal do Estatuto da Criança e do Adolescente!

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