Plagiando o título de um dos mais belos contos de Guimarães Rosa (“Meu Tio o Iauaretê”, do livro Estas Estórias), vou relembrar aqui um dos tios que marcaram minha infância. A única diferença do título é que o Iauaretê do Rosa era uma onça/homem mansa, ao passo que o meu tio Saneco era um homem bem bravinho. Era de porte pequeno (marca da “família da Chácara”...), mas um leão para trabalhar, um grande homem em todos os sentidos.
Lembro-me bem do tio Saneco (Domiciano de Paula Pinto) quando morava no Maracujá, numa fazenda arrendada. Tia Quiquita (Maria Benedita Santos) era a rainha da casa: alta, magra, bondosa e trabalhadora. Em minhas primeiras férias na roça, lá estavam os 9 filhos, em ordem de nascimento: a Maria (já casada e residente nas redondezas do Maracujá), o Dinho (Geraldo), a Adair, a Carmem (Sebastiana do Carmo), a Olga, a Ivone, o Renato, a Vera e o Osmar (Mazinho).
Tio Saneco tinha um trato com o Góes, meu pai. A Adair vinha para nossa casa em Resende Costa para fazer o primário e tornar-se professora na zona rural (no Maracujá) e eu passaria as férias de fim de ano lá na roça. O mesmo aconteceu com a Ivone, depois que tio Saneco se mudou para a Floresta, onde nasceu seu 10º filho, o Zé Imar.
Imaginem que Resende Costa era muito pequena, quase uma grande roça. Mas para mim, com meus oito anos, a fazenda era um paraíso. As vacas no curral berrando de manhã bem na janela do quarto, sobretudo a “Paraíba”, pegadeira, que dava medo, os cavalos, a mula para levar fubá, banda de porco e milho para vender na vila, o cachorro Piloto do Renato, com uma cangalhazinha de verdade no lombo para a gente brincar de burro de carga, um fornão de lenha na cozinha, de onde saíam os gostosos biscoitos da tia Quiquita, um engenho para o açúcar, o melado e a rapadura e a gente tirando escondido os torrõezinhos de açúcar que secavam ao sol nas esteiras, quanta coisa boa na memória de um menino da vila...
À tardinha era uma gostosura. Na frente da casa havia um espaço gramado, no qual o Dinho costumava soltar uma bola para nossa alegria. Daí ele ia ao munho (moinho) e ligava um pequeno dínamo, que acendia uma lâmpada fraquinha no quarto dele e de onde saíam os sons de um velho rádio. Costumava também chegar algum violeiro, para se ajuntar ao cavaquinho do agregado Zé Maria.
Numa tarde fomos todos ver a sede do sítio Floresta, que o tio estava comprando. Achei gozado ver o proprietário, doente na cama, debaixo de tábuas de queijo corando dependuradas no teto.
Mas acabou-se o que era doce. Antes do fim das férias no Maracujá, peguei um sarampo brabo. Para minha tristeza, numa manhã ensolarada de domingo, o tio Saneco me pôs na garupa da mula, marchando para a minha casa. Era 1950 e a cidade estava engalanada de bandeirinhas para a festa da Missa Nova do padre Josué Francisco da Natividade.
Nas férias seguintes fui para a Floresta. Era fim de ano e a Adair fez uma festinha de “formatura”, colocando-me para declamar uma poesia. Numa tarde fomos visitar o vizinho senhor Belena, já bem doente no seu enorme casarão. No canto, ao pé do catre (cama), uma galinha chocava tranquilamente os seus ovos.
O tio Saneco era bem bravinho. E era mesmo. Um dia ele foi ao armazém do Chiquito Vale, na vila, para fazer a tradicional barganha: descarregar da mula uma banda de porco para colocar depois um saco de açúcar. Ali por perto estava o Sô Pedro (o Sô Pedro Reco-reco) varrendo a rua. A mula era alta e tio Saneco pelejava para arribar o saco. Sô Pedro não perdeu a oportunidade para dizer: “Aí, Sô Saneco, que falta que faz um palmo de homem, hein?”. E, sabendo que o tio Saneco era bravo, correu para ajudá-lo...
Assim era o tio Saneco. Sempre me lembro dele desde quando, muitos anos depois, li um belo conto do Guimarães Rosa, “Substância”, (Primeiras Estórias)*. Conto de amor na roça, envolvendo o Sionésio, a Maria Exita e a brancura no fabrico do polvilho. Ficou gravado na minha memória o ambiente da Floresta e tio Saneco todo branquinho de polvilho, ali por perto da cachoeirinha que cantava dia e noite nos fundos da casa da Floresta. Tempos bons que não voltam mais...
*Pedro Bial e sua ex-mulher, Giulia Gam, transformaram esse conto e mais quatro outros em cinema (longa).
Heverton Tadeu Sottani - 19/04/2015
à equipe do JL , fico feliz pela edição e publicação deste texto sobre meu bisavô...