Nesta edição, não resisti. Deixo minha Resende Costa bem quietinha aí em cima da laje e vou para Belo Horizonte. Bem para o centro, naquela balbúrdia de barulho, bandeiras, e buzinas. E de gente disputando o espaço com os carros. Sim, gente, mas gente simples, gente a pé, gente humilde, como a gente da canção do Chico Buarque, do Vinicius e do Garoto. Porque gente rica e esnobe, quando passa por lá, só passa de carro.
Era uma segunda pela manhã e eu, de carro, tinha que necessariamente passar pela Av. Afonso Pena, indo para a UFMG. Vidros levantados, portas travadas, ar condicionado ligado, parei num sinal. De olho naquela multidão de gente que atravessava apressada a avenida, procurava adivinhar no semblante de cada transeunte um possível assaltante. Abriu o sinal e um dos tradicionais apressadinhos buzinou lá bem atrás, como se tivéssemos que passar por cima dos outros carros para dar caminho pra ele. Ao arrancar, avistei um monstrengo enorme, algo indefinido, arrastando-se mais adiante, na primeira faixa ao lado do canteiro central. Tive que dar sinal e virar um pouco à direita, para evitar aquilo. Novas buzinas de protesto. Sinal fechado mais à frente, eu parei ao lado do monstro. E tive um tempinho para me fixar nele.
Era uma enorme montanha de papelão, papéis e outras traquitanas, movendo-se vagarosamente sobre duas rodinhas de madeira, circuladas por duas tiras de borracha. Dois sarrafos projetados para frente e, entre eles, um negro alto e magro, tentando subjugá-lo para baixo, para que ele não empinasse para trás. De tão alto, dava medo de ficar ao seu lado ou logo atrás. Sandália de dedo surrada, calça suja e mal enjambrada, sua camisa era apenas uma vaporosa camada de suor. Voltei os olhos para dentro do carro. Confortavelmente assentado, ar condicionado, roupa e tênis novos, dinheiro no bolso, livros, um CD despejando um concerto para fagote e orquestra, de Mozart. Que contraste, me dei conta, arrancando ao verde do sinal. Não sem antes ouvir, do carro de trás, uma buzinada raivosa e um palavrão do motorista para o negro que lhe atrapalhava o caminho. Mas essa avenida, pensei, não seria de todos? Se os ricos, indo para seu trabalho, podem entupi-la com seus confortáveis carrões, por que o negro não pode, para ganhar alguns míseros reais, arrastar com enorme esforço aquela geringonça? Afinal, é ali mesmo, na rua, o local do seu trabalho.
Paradoxos da vida, continuei pensando. Inexplicáveis? Aí veio em meu socorro o Guimarães Rosa: Se todo animal inspira ternura, o que houve, então, com os homens? Isso mesmo. Todo animal inspira ternura, ainda que ele estraçalhe suas presas para se alimentar. Ele apenas segue os instintos de sobrevivência da espécie, sem ódio, sem palavrões, sem preconceitos. O ser humano, consciente e inteligente, não. Ele mata por ódio, ele despreza e discrimina seus semelhantes. O rico, quando sai à rua de carro, sente-se poderoso, vê em cada outro um inimigo, vira animal irracional, mas daqueles sem nenhuma ternura. Lembrei-me, então, de que muita gente e muitas religiões se enraiveceram com o filósofo inglês Thomas Hobbes, simplesmente porque ele proclamou a mais evidente das verdades: homo homini lupus, o homem é o lobo do homem.
Do Guimarães Rosa passei para o Hobbes e, me afastando do monstro, pulei para o Evangelho. No retrovisor, perseguia-me a imagem chocante do negro suarento, magro, maltrapilho. Puxando, impassível e sem nenhum medo dos carros, uma montanha de papel. Eu já chegando tranqüilo na universidade e ele, talvez, ainda recebendo buzinadas e xingatórios pela Afonso Pena afora. Pela simples razão, coitado, de que estava ali trabalhando para apenas sobreviver.
Narra o evangelista João que Jesus foi a uma festa na casa de Lázaro e de sua irmã Maria. Num dado momento, Maria tomou um óleo perfumado, de grande valor e com ele ungiu os pés de Jesus, enxugando-os a seguir com seus cabelos. Judas Iscariotes recriminou a cena, dizendo que teria sido melhor vender o ungüento e distribuir o dinheiro aos pobres. Foi quando Jesus pronunciou a famosa frase: Pobres sempre os tereis, mas a mim nem sempre me tereis (12,8). Pois é. Essa frase sempre esteve atravessada na minha cabeça, sobretudo quando vejo cenas como aquela do negro da avenida. Os exegetas (intérpretes da Bíblia) costumam fazer alguns malabarismos para explicar ou justificar essa frase. Teria o Cristo dito uma coisa e João, muitos anos depois, escrito outra? Seja lá o que for, o relato evangélico confirma que naquele tempo já havia pobres e ricos. Se o mesmo Evangelho diz que somos todos filhos de Deus, como entender cenas como aquela? Aquela e milhões de outras, de gente arrastando a duras penas o monstrengo de sua pobreza e miséria por este mundo afora? Ao seu lado, a riqueza, o conforto, o desperdício, o cinismo, a esnobação, a humilhação dos filhos ricos de Deus. Paradoxo inexplicável? Acho que não. E termino com o Chico: “Eu que não creio, peço a Deus por minha gente, é gente humilde, que vontade de chorar”.
Paradoxo
16 de Novembro de 2008, por Rosalvo Pinto