Não é gratuitamente que Paris é a cidade mais visitada do mundo: há motivos de sobra para isso. Chegando por Orly, lá do alto parece que a cidade se derrama diante dos olhos, a partir da Torre Eiffel. O impacto na pista e uma curiosa sensação: bem, você está em Paris! Agora basta começar a andar. Não é preciso andar muito. Um bom giro, despreocupadamente, sem pressa e sem meta, a partir de qualquer ponto. Ou, de preferência, do Quartier Latin e adjacências, estendendo-se até as imediações do Sena, daquele ponto onde você, de repente, leva um susto, ao ver a Île de la Cité e, dentro dela, a silhueta daquela catedral das torres cortadas, cuja representação mental, tal como a da Torre Eiffel, estão há anos esquecidas na memória de qualquer cidadão do mundo.
Andar pelas ruas, devagar, curtindo e degustando tudo, as inúmeras e vetustas igrejas, os imponentes monumentos, os elegantes e grandiosos palácios e edifícios públicos, as tradicionais créperies servindo seus deliciosos crepes, as estações do metrô, os nomes das ruas, que dão a sensação de que você está abrindo as páginas de um interminável hagiológio, desde as famosas boulevards até as estreitas e antigas ruelas, os célebres cafés, os sofisticados e aconchegantes restaurantes, as grandes livrarias, olha ali, na Boulevard St-Germain, a estátua do Danton, aquele dos livros de História! Logo mais adiante, o café frequentado pelo Sartre e por sua inseparável Simone de Beauvoir, e o giro continua, vale a pena parar bons minutos diante de pequenos e grandes detalhes, como a monumental e detalhada portada de Notre Dame ou o impressionante edifício-monumento, dedicado ao arcanjo São Miguel, construído por Napoleão III em 1860, que fecha com chave de ouro e de cascatas a boulevard St-Michel e a praça do mesmo nome, à beira do Sena, ah!, o Sena, com suas magníficas pontes, passar sobre ele, continuar andando, o dia inteiro, sempre, sem rumo e, de repente, as pernas doendo, sentir-se no meio da Pont Neuf, vendo o sol se pôr pelos lados da Torre Eiffel e sobre as águas limpas e brilhantes do rio, as luzes se acendendo por todos os lados, os últimos bateaux-mouches deslizando por baixo de você, iluminados e cheios de turistas, de volta aos seus cais, olha de cá, olha de lá e a sensação de não se saber pra onde olhar ... chega, agora falta apenas escolher a mesa de um café, e, da calçada, curtir o vai-e-vem dos últimos transeuntes de um dia parisiense e, quem sabe, até mesmo tomar dali um táxi para o aeroporto e voltar para casa. Com uma certeza: Paris, realmente, tem que ser a cidade mais visitada do mundo. O resto são algumas fotos e gostosas lembranças no futuro.
Detalhes, contrastes e paradoxos? Como imaginar que a Paris das tantas igrejas e ruas ligadas aos seus santos virou a Paris de tantos pecados e de tanta perdição? Onde estão St-Michel, St-. Germain, St-Sulpice, St-Denis, St-Eustâche, St-Placide, St-Lazare, St-Severin, St-Jacques, St- Étienne, St-Benoît, St-Louis, St-Remi, St-André, St-Gervais, St-Antoine, St-Paul, St-Martin, St-Honoré, Ste-Geneviève, Ste-Madeleine? E as pobres lavadeiras das margens do Sena, que deixaram seu nome numa ruela estreita e curiosa, a Rue des Lavandières, que começa ali na Boulevard St-Germain, estendendo-se até o rio, sob a gloriosa proteção de sua santa padroeira, a Ste-Opportune, onde estarão? Por onde andam os severos monges da Abadia de Cluny, a ordem beneditina que lutava para a moralização da Igreja na Idade Média, cujas monumentais ruínas do século 12 estão bem ali, escancaradas à visitação, na Boulevard St-Michel? Pois é, a Paris dos santos e das santas tornou-se a Paris da luxúria no Moulin Rouge, nos perfumes provocantes das Galeries Lafayette, nos filmes eróticos e heréticos, O último tango em Paris, o La belle de jour, o Je vous salue Marie, a Paris da gula, nos seus templos gastronômicos, da soberba, nos seus palácios monumentais, antes as vestes rudes de seus santos e santas, hoje a capital mundial da haute couture, desfilando seus modelos despudorados, com seus novos deuses e suas ninfetas sensuais, antes a simplicidade das lavadeiras de Ste-Opportune, hoje a modernidade dos narizes aduncos e ameaçadores dos TGV’s, estacionados na Gare de Montparnasse, como feras armando o bote pra saltar dos trilhos, onde a santidade e a sabedoria dos santos de outrora, se hoje os discursos escandalosos de seus filósofos e cientistas agnósticos e ateus? E você, diante de tamanho paradoxo, tem vontade de ir acordando os santos de cada rua em que vai pisando, convocando as lavadeiras do Sena e desenterrando os monges de Cluny para verem sua Paris de hoje, que não é mais deles e muito menos dos parisienses e dos franceses, é de todos os cidadãos do mundo, dos milhares de imigrantes de todas as raças, cores e línguas que você vê pelas ruas e dos milhões de turistas, como você, perdidos naquele delicioso caos.
E, no entanto, Paris é sempre Paris. Desde o século 16, quando Montaigne, o rei dos aforismos, escreveu, não um simples aforismo a mais, mas uma verdadeira declaração de amor a sua cidade:
“Paris a mon coeur dès mon enfance. Je ne suis français que par cette grande cité. Grande sourtout et incomparable en varieté. La gloire de la France et l’un des plus nobles ornements du monde”.
Linguagem do amor, dispensa tradução... datada de 24.06.1533, como se lê no pedestal de sua sisuda figura, tranquilamente assentada bem em frente aos templos do saber de Paris, o Collège de France, a Sorbonne. Michel de Montaigne tinha razão. O pecado e a perdição fazem a beleza, o charme e o fascínio de sua cidade. Cidade-luz, como se dizia antigamente, cidade iluminada, você pensa, ninguém vai a Paris impunemente. Experimente perguntar a quem já andou por outras partes do mundo: você tem uma única chance de voltar à Europa, escolha a cidade. É bem provável que onze, entre dez, digam, e com razão: Paris!