Era naquele tempo em que o tempo gostosamente não passava. Sobretudo por lá na nossa Resende Costa, no topo de suas lajes, isolada do mundo. Fins dos anos quarenta e início dos cinquenta. Habitava a Casa Paroquial, até então uma fortaleza inexpugnável, uma dupla da pesada: Pe. Nélson e Pe. Adelmo. Dupla do contraste: a seriedade, o rigor, a sisudez do primeiro, uns dez anos de sacerdócio a mais, e a jovialidade e o dinamismo do segundo, recém ordenado e chegado. Para desespero do primeiro, a casa paroquial passou a ser escancarada para a meninada. Nunca se soube que alguém tenha ousado entrar no quarto do primeiro, mas o quarto do segundo, um que dava para a rua, virou casa-da-mãe-joana. Meninos e meninas entrando e saindo, algazarras, barulho. O inimaginável: até na sala de jantar, lá nos fundos, era possível ver coroinhas e cruzados rodeando a mesa, ganhando biscoitos e tomando café. No princípio, todos desconfiados, de olho no chefe da casa. Depois, a meninada já se sentia em casa.
O novo ocupante da casa trouxe ainda outro problema: as visitas de parentes. Seu Leôncio, seu pai, volta e meia botava seu velho fordinho-bigode preto na estrada e vinha de Prados visitar o filho. Não demorou a aparecer um problema mais complicado para o guardião da fortaleza.
Entre as visitas, num daqueles dias de inverno bravo, tinha vindo uma jovem moça. Por alguma razão, os visitantes tiveram que pernoitar na cidade. E agora? O problema era onde colocar a moça. Como imaginar uma mocinha, no esplendor de sua donzelice, perambulando à noite pelo severo corredor que levava da sala central à sala de jantar e ao banheiro, lá no fundo? Havia um quarto de hóspedes e um ao lado. Mas esse outro já tinha um inquilino importante, fixo, que não iria sair dali. Vestido de roxo, ajoelhado, com uma enorme e pesada cruz preta nos ombros, uma aterrorizante coroa de espinhos, o sangue escorrendo pelo rosto ... Era nada mais nada menos que o Senhor dos Passos. Colocar uma mocinha ali, para dormir junto com ele? Não seria uma profanação, um sacrilégio, um pecado, remoía-se preocupado o Pe. Nélson. Seja lá o que Deus e o severíssimo arcebispo de Mariana, Dom Helvécio Gomes de Oliveira, quiserem, pensou. Não tinha outro jeito. Era hora de dormir e foi justamente para lá que ele foi levando a mocinha.
Resende Costa daquele tempo tinha uma energia elétrica precária. A “Usina do Azevedo”, entre Coroas e São João del-Rei, fornecia uma minguada corrente elétrica que mal acendia algumas poucas lâmpadas, que mais pareciam brasinhas dependuradas nos pendentes. Isso, quando fornecia, sem se falar que, lá pelas dez da noite, o Zé Piluço (Sr. José Peluzi) passava pela “distribuidora”, logo ali ao lado da casa paroquial, e desligava a energia da cidade. Depois desse horário, só mesmo lamparinas de querosene ou as tradicionais “velas de esparmacete”, que me lembro de ouvir meu pai chamar de “vela espramassete”. O friozinho cortante daquela noite e a penumbra do comprido corredor já prenunciavam um certo clima de terror. Pe. Nelson e sua problemática visita já iam chegando ao tal quarto.
Mas quando o anfitrião abriu a porta, acendeu a brasinha e, na penumbra, a mocinha enxergou um vulto estranho, imenso e inerte, um calafrio percorreu suas veias. Não teve nem tempo de se refazer do susto: este é o seu quarto e sua cama está arrumada ali, ele falou, indicando uma cama de frente para o estranho vulto. Inicialmente, a mocinha titubeou, mas não podia falar nada. Além de visita, quem ousaria enfrentar o Pe. Nélson? Foi o que pensou, num segundo. Deu um passo à frente. Ele despediu-se, puxou a porta e se foi. A mocinha simplesmente estacou. Virou uma estátua, perplexa, diante da outra. De repente, aterrorizada, pulou na cama e se escondeu debaixo dos cobertores.
Algum tempo depois, refeita do susto inicial, mas ainda suando frio, arriscou-se a dar uma furtiva olhada. Levantou vagarosamente um cantinho do cobertor e, horror, lá continuava ele, impassível, encarando-a com sua expressão de dor e de morte. A imensa cruz negra, a roupa toda roxa, a única coisa que mal enxergava era uma rosto todo escorrido de sangue. Puxou rapidamente o cobertor. Lutou bravamente contra tudo: a escuridão, o medo, o sono, os pesadelos. Simplesmente não dormiu naquela noite. Noite de terror, com aquela companhia santa e indesejável!
A mocinha-protagonista dessa história foi a Rosa Maria da Silva Campos, Sra. Rosa Maria Campos Batista, depois de casada. Ela é sobrinha do Pe. Adelmo, filha de sua irmã Maria Stella da Silva Campos e avó da Júlia Batista Castilho de Avellar, minha brilhante aluna no programa de Iniciação Científica na Faculdade de Letras da UFMG. Dias desses, falando que eu era de Resende Costa, a Júlia me disse que tinha ligações com a vizinha cidade de Prados. Com poucos minutos de conversa, fiquei sabendo de suas ligações com o Pe. Adelmo. Agradeço a ela os contactos com a Da. Rosa, sua avó, e a curiosa história para a escritura deste texto.
Santa e indesejada companhia ...
13 de Julho de 2009, por Rosalvo Pinto