Pode ser que algum leitor estranhe o título. Não se trata dos antigos irmãos das chamadas “Ordens Terceiras” (de São Francisco da Penitência, dos Carmelitas etc.). Nem aqueles que plantam (roças) à terça. Os dicionários não registram, mas, todo falante de uma língua tem o direito de inventar uma palavra. Foi o que eu fiz.
Talvez um dos objetos religiosos mais difundidos no mundo, pelo menos no Ocidente, seja o “terço”, ou o “rosário”. Nas línguas mais perto de nós o terço é rosario, no espanhol, (la) terza, italiano, rosaire, francês, Rozenkranz, alemão e rosary, inglês. No português distinguimos o terço do rosário, que é o conjunto de três terços seguidos. O nome “terço” vem da reza principal, corresponde à terça parte do rosário. E o “terceiro” é aquele que faz terço.
Criado o nome, vamos adiante. Mas, infelizmente, é nome de uma profissão que não existe mais. Hoje os terços são fabricados industrialmente. Há anos que não vejo um terceiro, como se via antigamente. Porém, vale mais a pena dizer “terceiro” do que “fazedor de terço”.
Como menino, lembro-me dos dois grandes terceiros em Resende Costa: o Nhonhô Caiano e o Zezinho da Santa Casa. Mais recentemente, foi o Gabriel Pinto, irmão do sô Zé Pedro (pai do Serginho, do Lucílio etc.).
Modéstia à parte, nos meus tempos de menino no seminário, tornei-me um exímio terceiro. Meu alicate - a ferramenta básica e quase única de um terceiro -, aposentou há mais de 50 anos. Coitado, deve ter saudades. Para não enferrujar, vez por outra arranjo um servicinho pra ele. Mas o que ele sabia mesmo era fazer terço. Aliás, minto. O meu foi um alicate de dentista, aço de primeira, bico curtinho, dava mais firmeza para trabalhar. Ganhei-o de um colega de seminário, o Reinaldo de Moraes Cunha, de Mercês do Pomba.
Além do alicate, a gente mesmo fazia uma geringonçazinha, como se fosse uma pua ou furadeira. Era muito simples: uma rodinha de madeira, um toquinho redondo de 25cm com um ferrinho na ponta, um pedaço de barbante e pronto. Estava pronta a engenhoca.
Nos meus tempos de terceiro a gente utilizava quatro tipos de bolinhas, ou “contas”. As mais simples, abundantes e mais fáceis de se trabalhar com elas eram as “contas de lágrimas”. Branco-cinzentas, tinham um formato de lágrima. Bastava apanhá-las pelos matos e tirar com um arame fino (ou agulha) o seu miolo central, pois eram já furadas pelo centro. Outra, também muito comum nos matos, era redondinha, pequena e bem preta. Se não me falha a memória, eram as “contas de caeté” e era relativamente fácil de ser usada. Outra, mais rara e mais bonita, era a conta de “canafístula”, marronzada, vinda de um arbusto médio, também nativo nos matos. O problema é que ela era dura e difícil de ser furada, pois, além de dura, não tinha um formato muito regular. Por fim, a mais elegante, pois dava um terço mais comprido e, sobretudo, mais solene, mais religioso, por causa de uma certa ligação evocativa com a oliveira, árvore sempre muito lembrada na Bíblia, no Novo Testamento: era a conta de caroço de azeitona. Além de difícil para furar, dava trabalho para limpar, lavar e raspar. O problema maior era o custo da azeitona, que naqueles tempos era cara e rara.
Ainda nos meus tempos, na década de 50, apareceram as contas artificiais, de plástico, de cinco cores. Com essas contas a gente fazia um terço colorido, conhecido como “terço missionário”. Cada um dos cinco mistérios (de 10 contas) tinha uma cor, representando os 5 continentes: branca (Europa), amarela (Ásia), vermelha (América) verde (Oceania) e preta (África).
Voltando ao meu velho amigo, o alicate, devo dizer que ele, depois de fazer tantos terços, quase me jogou nas garras da polícia repressora da ditadura militar argentina. Era o tumultuado ano de 1968. Violentos movimentos estudantis no Brasil e na Argentina. Eu estava em Córdoba, Argentina, fazendo o 3º. ano de Teologia e, em dezembro, voltávamos, eu e o colega Dídimo, para o Brasil. Saímos de trem de Córdoba para Santa Fé, capital da província do mesmo nome, onde chegamos por volta das 23 horas. Tomamos um táxi e pedimos para nos levar ao Colégio Salesiano, onde iríamos pernoitar, conhecer a cidade e seguir para o norte da Argentina. O taxista percebeu que éramos estudantes brasileiros e, desconfiado, ao invés do colégio, nos levou para a delegacia da polícia federal.
Passamos a noite presos e sendo interrogados. Em dado momento, um policial abriu nossas malas e esparramou tudo pelo chão. Mexe daqui, mexa dali, ele viu o alicate. Apanhou-o, levou até a fechadura da porta do gabinete e sentenciou: “E isso aqui? Já sei. Com certeza é para vocês assaltarem bancos e arrombarem caixas!”. Depois de muitas interrogações, pedimos para falar com a Embaixada do Brasil em Buenos Aires, ou para o Colégio, onde nos esperavam. Finalmente, lá pelas seis da manhã nos liberaram. Apavorados, tratamos de sumir da cidade. Culpa do meu fiel alicate. Mas ele se redimiu e nunca mais me abandonou. E nem arrombou portas e caixas. É apenas um simples e santo terceiro!