Nós, seres humanos, tal como um casulo, somos fechados em nós mesmos. Com a diferença de que o casulo se abre para a vida e para a beleza. Nós ... sei lá. Nossa face, na verdade, não passa de uma máscara que nos esconde dos nossos semelhantes. Por vezes resolvemos nos expor: ou aos ouvidos de seletos amigos, de um analista ou às páginas de um diário íntimo.
Por esses dias chegou às minhas mãos um caderno de anotações de um conterrâneo nosso que já nos deixou há uns 10 anos atrás. Levei um susto ao ver tanta coisa interessante. Inimaginável, uma preciosidade. Poderia ser considerado como um diário? Talvez. Um grande número de frases, ditos populares, pensamentos dos mais diversos autores, notícias do que acontecia pelo mundo, pelo Brasil e por nossa terra, alguns relatos do seu dia-a-dia, alguns momentos de abertura do seu próprio “eu”. Diria que o conteúdo de sua longa lista de pensamentos – alguns dele próprio -, nada mais é do que a revelação de seu perfil de ser humano, de seu modo de pensar e ver a si e ao mundo em que ele vivia.
Com toda delicadeza, vou abrindo e compartilhando com os leitores algumas das páginas do seu surrado e amarelado caderno, que guardam seus segredos, desejos e suas inquietudes. Quase todas as páginas têm, no seu topo, o título de “seleção, ou seleções”, por vezes, “seleções ajuntadas”.
Os pensamentos. De tantos que talvez ele nem sequer conhecia: Aristóteles (“ A esperança é o sonho do homem acordado”), Sêneca, Galileu, Epicteto, Leonardo Boff, Montaigne (um dos maiores aforistas..) etc. A maioria retirados da “Folhinha do Coração de Jesus”, aquela da qual a gente retirava uma “folhinha” a cada dia, com os nomes dos santos do dia.
O mais interessante é que, no meio de tantas frases e pensamentos, ele incluía os seus, às vezes em versos e assinava: Vicente de Oliveira. Ou, engraçado, como em: “Si eu tivesse um milhão – Não cumia mais feijão – era só galinhão com batatão – Bobó do Vicente”. Muitas outras, anônimas, poderiam também ser dele, por vezes adaptadas de outras. Percebe-se isso pela sua própria escrita e pelos seus gostos, como em “Palavras sem obras é violão sem cordas”. O violão foi uma de suas grandes paixões. Ainda moço e enquanto morou em Resende Costa, sempre pertenceu à banda de música, tocando clarineta.
Muitas vezes ele dialogava com as frases por ele escolhidas: “A mãe verdadeira carrega o filho 9 meses no ventre, 2 anos nos braços e o resto da vida no coração”, ao que ele acrescentava: “é mole?”. Ou: “Não existem mulheres feias: existem apenas as que não sabem se tornar atraentes”. E ele: “o bicho é bunito..., i, é, i é ...”. As mulheres, aliás, eram outra de suas paixões.
Misturava o romântico e o cômico: “A amizade é como uma – Folhagem que dá flor – Sendo bem cultivada – Pode virar amor” e, logo a seguir: “Assim como si toma remedio – Na certeza que não vai sará ... – Reza-se: na esperança - Do papu secá!...”. E, muitas vezes o saudoso: “Chama-se Abstemio a pessoa que não bebi: alcool nem pinga. Vicentinho com 12 anos – 3º. Ano História natural – Grupo Escolar Assis Resende de R. Costa, em 26 julho de 1924”.
Cita várias vezes o professor Lara Resende, sinal de que ele tinha o livro ou, pelos menos, o tinha emprestado. Entretanto, a certa altura, ele discorda veementemente dele, defendendo a “Lei áurea”: “Lei auria, odioza, não sei porque, senhor professor Lara Resende, lei ruinosa, não tenho culpas de seus avôs que vivia as custas de escravos, ter quebrado depois de 1888 com a bendita lei Auria, e também o seu pai que ficou pobre – Vicente”. E continua: “Eu achei que foi a lei benigna no Brasil, não to vendo nada de lei ruinosa – Vicente de Oliveira”.
Tinha um carinho especial pela sua primeira professora: “Dna. Margarida Dangelo, minha professoura em 1923-24 e 25. Nasceu em 9 de junho de 1899. Fez seu centenário no dia 9/6. Deu no jornal Gazeta de São João del-rei do dia 12/6. Vicente de Oliveira, 9 de junho de 1999. Que Deus abençoi a centenaria”.
Frases, pensamentos, comentários e informações, ele e seu inseparável caderno vão caminhando para o seu fim. O caderno, cada vez mais desorganizado. Ele, sentindo-se triste e só. “Estou doente, sem esperança meu Deus 12-9-2000”. Queixava-se muito de sua insônia: “noite de insônia 25 de outubro de 2001”. Mas conservava seu amor e carinho pelos muitos amigos: “Dia 4 de setembro 2001 veio aqui um anjo do senhor: carente como eu. Conversei com ela... me pediu si eu deixava ela me dar um abraço ... fui abraçado por ela ... um anjo do senhor! Que Deus ti guia neste mundo tão custoso de enfrentar, amém”.
Antevia o seu fim, sempre muito religioso: “Em primeiro lugar temor de Deus, em segundo lugar a fé em Deus ... em terceiro lugar nossas orações a Deus – Vicente Oliveira”.
Assim, na sua simplicidade, atento ao mundo, entre muitos amigos (caderno cheio de telefones), alma musical, por vezes amargurado pela solidão, mas transbordando carinho, pôs um ponto final no seu caderno.
Vicente do Zé Braz
13 de Fevereiro de 2012, por Rosalvo Pinto