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A FARSA DA UNIVERSALIZAÇÃO DO SANEAMENTO ATRAVÉS DA INICIATIVA PRIVADA

25 de Junho de 2020, por Fernando Chaves

O Senado Federal aprovou, nesta quarta-feira (24), um novo marco legal para o saneamento básico no Brasil (PL 4.162/2019), permitindo uma maior abertura do setor à inciativa privada. O projeto, que teve a aprovação da Câmara em 2019 e segue para sanção presidencial, foi aprovado no congresso sob a falácia de que a entrada mais forte do capital privado no segmento vai melhorar a qualidade e impulsionar a universalização dos serviços de tratamento de água e esgoto no país.

Cabe a pergunta: locais como Resende Costa teriam algum dia acesso ao abastecimento de água tratada e a um sistema de recolhimento e tratamento de esgoto se esse setor no país funcionasse baseado em investimentos privados e nas regras de mercado (lucro)? A resposta é NÃO, NUNCA TERÍAMOS. A título de exemplo, o nível de investimento que é requerido em municípios com características semelhantes às nossas (localização, tamanho populacional, tipo de solo e relevo, distância dos mananciais) é muito alto em relação aos ganhos almejados pelas empresas privadas de saneamento e sua lógica de mercado. Somente com um modelo de financiamento fundamentalmente público esses serviços podem chegar em localidades como a nossa ou em regiões periféricas, e elas são muitas. Hoje existe um regime de subsídio cruzado, que prevê a transferência de recursos de municípios que arrecadam muito, para realizar investimentos em saneamento nos municípios menores e/ou mais pobres. Se alguma empresa privada se interessasse (o que é muito improvável) em realizar empreendimentos em contextos similares ou ainda mais onerosos que o da nossa cidade, certamente cobraria seu preço, ou seja, teríamos tarifas muito mais caras. Como a mudança que o congresso está aprovando na legislação acaba com o sistema de subsídio cruzado, a tendência é dificultar ainda mais a universalização dos serviços de saneamento daqui pra frente.

A farsa e a manipulação de dados em torno do assunto escondem que a atual legislação NÃO IMPEDE a atuação do setor privado no saneamento. O capital privado já pode participar por meio concessões totais ou parciais, subconcessões, PPPs, alienação total ou parcial de ativos, emissão de debentures, dentre outras. Também escondem que o setor de saneamento obteve avanços positivos em vários indicadores desde 2007, quando foi aprovada a lei 11.445, que estabeleceu um marco legal para o setor, o que era esperado desde a promulgação da constituição de 1988. É óbvio que há muitos desafios a se superar, mas eles não estão ligados à atual legislação.  Outro dado que está sendo jogado para debaixo do tapete durante a tramitação dessa pauta no congresso é o histórico de baixa qualidade nos serviços de saneamento prestados pelo setor privado, no Brasil e no mundo.

No passado recente, tivemos vários exemplos internacionais de reestatização de serviços de saneamento, após privatizações malsucedidas.  Estudo divulgado em maio deste ano pelo Instituto Transnacional (TNI), sediado na Holanda, mostra casos emblemáticos de municípios que reestatizaram serviços de água e esgoto entre 2000 e 2019. Alemanha, Canadá, EUA, Espanha têm exemplos significativos. Na França, mais de 100 municípios, incluindo Paris, sede de grandes empresas transnacionais que atuam no saneamento, tiveram os serviços remunicipalizados. Dentre os motivos mais recorrentes para a reestatização estão: predomínio do lucro sobre o interesse coletivo, o descumprimento de regras e metas contratuais de expansão dos serviços para áreas pobres e periféricas, elevação no preço de tarifas e ineficiência dos agentes reguladores para exigir o cumprimento das metas pelas empresas. Imaginem como seria no Brasil, onde o Estado e agências reguladoras se mostram ainda mais vulneráveis aos assédios e lobbys do capital.       

Aliás, o Brasil já tem fartas experiências negativas nesse campo. Segundo dados publicados pela Escola Politécnica da UFRJ e pela Associação Nacional de Serviços Municipais de Saneamento (ASSEMAE), o Brasil é o segundo país do mundo que mais reestatiza serviços de saneamento devido à baixa qualidade no serviço prestado por empresas privadas. Alguns casos emblemáticos ocorreram em Itu (SP) e no Estado de Tocantins, onde a iniciativa privada “devolveu” ao Estado os municípios onde não houve interesse na exploração.  Outro exemplo dos péssimos resultados da privatização do saneamento é Manaus, que tem o setor nas mãos da iniciativa privada há 20 anos. Matéria do portal Outras Palavras, cita relatório do Instituto Trata Brasil e demonstra que o saneamento de Manaus – 6° maior município brasileiro – aparece em 96º lugar em qualidade no serviço, entre os 100 maiores municípios do país. O mesmo relatório aponta que os dez melhores municípios são operados por autarquias ou empresas públicas. Não é por acaso que a disseminação da COVID-19 foi muito mais severa em Manaus entre a população mais periférica e descoberta pelos serviços de saneamento.

Até o Banco Mundial, uma instituição símbolo do capitalismo e que já defendeu a privatização do setor no passado, hoje defende a importância do setor público na área de saneamento.

É lamentável ver nosso país caindo de novo no conto neoliberal e seguindo na contramão do mundo ao abrir espaço para a privatização de um setor tão essencial, para a internacionalização e financeirização do saneamento básico, visando atender à sanha de investidores e aos interesses de grupos restritos e contrários ao interesse da população brasileira.

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