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Um grande humanista dos anos de chumbo: Sobral Pinto, o advogado do Brasil

13 de Novembro de 2014, por João Magalhães

Sobral Pinto durante entrevista à Folha de São Paulo, aos 87 anos. Foto Portal Uol

Neste ano de cinquentenário – bodas de chumbo! – do golpe militar de 1964, a homenagem vai para os humanistas. Como já escrevi ao abordar o grande humanista Dom Paulo Evaristo Arns, minha admiração sempre foi e será para quem subordina todos seus valores ao valor supremo: o ser humano.

O destaque deste mês é o grande Heráclito Fontoura Sobral Pinto, (Barbacena,1893 –Rio de Janeiro,1991). Para alegria dos perseguidos e desamparados, advogou até os 96 anos!

 Em minha avaliação, o maior advogado que o país já teve, até hoje. Sempre viu na advocacia uma missão, um sentido para sua vida, muito mais que uma profissão. “Sou advogado, vou morrer advogado porque minhas ideias não morrem”.

Como escreveu o jornalista Nicolau da Rocha Cavalcanti: “como católico praticante (ia à  missa e comungava todos os dias) não abria mão da ortodoxia, mas não fez de sua fé uma viseira nem a transformou numa ideologia que estreitasse sua visão de mundo”. A prova disso é a defesa que fez dos líderes comunistas, Luiz Carlos Prestes e Harry Berger, na ditadura Vargas.

Ficou famoso nos tribunais quando invocou o decreto de proteção aos animais na defesa de Harry Berger, um ser humano de quase dois metros, apodrecendo num vão de escada de 60 centímetros e um ano sem tomar banho!

 Exigiu a aplicação aos prisioneiros dos artigos 1º e 3º do decreto-lei 2.4645 de proteção aos animais, fato inusitado nos tribunais: “Todos os animais existentes no país são tutelados do Estado”... “Manter animais em lugares anti-higiênicos ou que lhes impeçam a respiração, o movimento e o descanso, ou os privem de ar e luz...”: multa e prisão.

E daí para diante, o que vale é a pessoa. É o ser humano com seus direitos essenciais. É a liberdade, a democracia, a justiça que o movem à defesa desde ilustres como  Kubitschek, Arraes, Carlos Lacerda (que o chamava “um homem de absolutos”) até o mais ignoto injustiçado. Seu escritório no Rio de Janeiro “seria aquele onde qualquer pessoa, independentemente de seu viés ideológico, poderia obter auxílio na luta pelo respeito aos direitos humanos” (N. R. Cavalcanti).

 Sua pessoa e seus interesses materiais sempre vieram em segundo lugar. Recusou o cargo mais cobiçado da Magistratura, ministro do Supremo Tribunal Federal, oferecido por Juscelino em reconhecimento a sua luta pela legalidade de sua posse, alegando que fez isso por princípios e não por interesses pessoais.

 O documentário, feito pela neta, Paula Fiuza: “Sobral, o homem que não tinha preço” confirma o que seu biógrafo escreve: “Sobral não ligava para o dinheiro e, segundo depoimento unânime dos que o conheceram, na verdade ligava menos do que devia” (Márcio Scalercio: Heráclito Fontoura Sobral Pinto: Toda liberdade é Íngreme). “Nunca foi condição para ser cliente dele, ter meios econômicos para pagar os seus serviços” (N. R. Cavalcanti).

Não consigo omitir a surpresa e emoção que tive ao ler os capítulos finais de Memórias do Cárcere, obra póstuma de Graciliano Ramos, outra grande admiração minha, pela literatura, caráter, teor humano e coerência. Após descrever a surpresa e a desconfiança que teve quando sua mulher impôs-lhe assinar uma procuração para Sobral defendê-lo, o velho “Graça” escreve:

 “Dias depois, chamaram-me à secretaria. Aí se apresentou um cidadão magro, de meia altura, rosto enérgico, boca forte, olhos terrivelmente agudos. Sobral Pinto. Inquietou-me vê-lo perder tempo em visita a um preso vagabundo, refugo da colônia correcional: imaginara que apenas redigisse ou mandasse redigir uma petição de habeas corpus...

Começou interrogar-me. Era o primeiro interrogatório a que me submetiam...

- Ora, doutor, para que tantas minúcias? Como é que o senhor vai preparar a defesa se não existe acusação?...Não há processo.

- Dê graças a Deus, replicou o homem sagaz, espetando-me com olhar duro de gavião. Por que é que o senhor está preso?

 - Nunca me disseram nada.

 - São uns idiotas. Dê graças a Deus. Se eu fosse chefe de polícia, o senhor estaria aqui regularmente, com processo.

 - Muito bem. Onde é que o senhor ia achar matéria para isso, doutor?

- Nos seus romances, homem. Com as leis que fizeram por aí, os seus romances dariam para condená-lo...

- Que diabo! O estudo razoável dos meus sertanejos mudava-se em dinamite. O duro juízo do legista esfriou-me.

- Está bem. Não tinha pensado nisso.

Realmente pensava no prejuízo que me forçavam a causar ao paradoxo vivo ali sentando em frente de mim. Não havia dinheiro nem para os selos. Por que tirar da cadeia um pobre como eu?  Sobral Pinto me fez outras visitas. Palavra aqui, palavra ali - notei que ele era pobre também. E por isso queria libertar-me. As nossas ideias discrepavam. Coisas sem importância. Sobral Pinto, homem de caridade perfeita, queria tirar da cadeia um bicho inútil, na minha opinião,  um filho de Deus, na opinião dele”.

 

Este foi Sobral Pinto. Não pode ser esquecido!

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