Jessé
01 de Marco de 2023, por Evaldo Balbino 0
Loiro com uma falha nos dentinhos de leite. Seu sorriso meio oriental e meio alemão, as pernas ainda moles no molejo do corpo, andando ele de quatro pelo chão da casa. Chão de azulejo e ladrilho lindos, um corredor imenso pela casa tornando íntimos quartos afáveis. Uma casa bonita de se ver. De fraldinha ainda o garotinho, e eu pequeno menino encantado com guri menor do que eu. Na época, eu achava que ele era bem menor do que eu. Talvez fosse impressão, pois eu tinha uns 7 anos por essa época. Ele, porém, usava fralda; já eu, não. Em compensação, ainda em minha boca a chupeta. O bico de borracha me acompanhando como se aquilo tudo fosse o paraíso. E era.
Mesmo de chupeta, me sentia adulto perto de menininho tão pequeno buscando meus cuidados.
O gurizinho alegre engatinhando tinha um nome de origem hebraica: Jessé. “Filho de Deus”, esse bonito sentido. E de seus olhinhos puxados raiava uma luz. Um menino sansei, cuja avó materna, nissei, sempre tricotava e nos amava a nós meninos fazendo baderna em sua casa e brincando com o seu netinho.
Seu avô era de origem alemã, barriga grande, pele avermelhada de tanta brancura se expondo ao sol. Voz alta, forte e alegre a do avô.
Irmã Leonora e irmão Aristides, os nomes amáveis dos meigos avós.
Jessé era puro riso. Um riso gostoso, uma vontade danada na gente de apertar suas bochechas, de enroscar os nossos dedos no seu cabelo cacheado e amarelinho. Cabelo da cor do sol sem nuvem bem no meio do dia, sem calor e sem frio. Só uma vontade de alegria. Aquele sentir aconchegante de mornidão que nos atravessa e mora dentro da gente.
Minha irmã e eu já andávamos, mas engatinhávamos ali com ele para sermos iguais no existir, para sermos serenos e contentes pelas vidas meninas – a dele e as nossas. Ela já mocinha, mais “adulta” do que eu, me ensinando a vida como lição que se oferece a quem precisa.
Perante o Jessé, o meu sorriso. A alegria de quem travava contato com um anjo, brincando de levitar sob o peso da gravidade. O lúdico da vida tem o poder de atravessar montanhas, de driblar as leis da física, de viajar galáxias tantas e sem fim. Escondíamos um do outro pelos cantos da casa, empurrávamos carrinhos existentes ou não, gritávamos de felicidade pelo chão limpo e brilhante. Nem cera nem luz do sol, mas um fulgor íntimo do chão que nos amparava.
Brincar com o Jessé era um dos modos de existir sem preocupações.
Nos intervalos das brincadeiras, a avó chegando com suco e lanches, suas mãos tricotando guloseimas para bocas gulosas, sua sabedoria nos ensinando o ser criança na fugacidade da existência.
Do avô, também nos intervalos das brincadeiras ou no meio delas, a voz de trovão amoroso, o sorriso largo e companheiro, a barriga balançando e nos sacudindo de leveza e luz.
Hoje já se passaram muitos anos. Do neto sansei nada mais sei. Desde que os avós voltaram para São Paulo, de onde tinham ido para minha cidadezinha com o destino de evangelizar almas, não mais vi nem ouvi o amiguinho. Voltaram os avós para a casa da filha, mãe do Jessé, e por lá permaneceram os genitores até a morte. A notícia de ambos os falecimentos me foi dadamuito tempo depois pela voz de minha mãe.
Uma única vez, eu já morava em Belo Horizonte – e isso já tem tempo –, a irmã Leonora foi de São Paulo para nossa pequena urbe. E esteve lá em casa num domingo. Por um acaso, ou melhor, por uma bênção da vida, eu estava lá. Ela não me reconheceu. O rio era outro, e eu também. Mesmo assim ela me abraçou com afeto, e conversamos um pouco. Não cheguei a lhe perguntar sobre o neto. Não sei, hoje, porque à época não me lembrei de coisa tão importante. Não perguntei e ficou por isso mesmo. Até que a notícia do falecimento de senhora tão boa me chegou, como alguns anos antes já me tinha chegado a informação da morte do seu esposo.
Nas cortinas do tempo, às vezes diáfanas e às vezes não, vejo e entrevejo o menino de dentes de leite falhados. E o seu sorriso não é escravo do velho tempo, o antigo e eterno Chronos que nos devora, mas adorno ofertado por Kairós, a vivência oportuna, especial, memorável, cheia de significância. De lembrança assim não fugimos. Antes nos tornamos seus cultivadores, como um jardineiro amoroso cuida de sua flor.
Um novo ano
26 de Janeiro de 2023, por Evaldo Balbino 0
Calendários são criações humanas. Deus está fora do tempo e não precisa de demarcações. Mesmo assim delimitamos o sagrado, delineamos suas possíveis faces. E como são belas nossas representações, mesmo sendo imperfeitas! Nem passado nem presente nem futuro – nada disso existe para um eterno desde sempre existindo e continuamente vivendo. Nós, no entanto, somos escravos do tempo. Precisamos de organização porque em tudo, mesmo que inconscientemente, vemos apenas um caos, uma ausência de explicação e, portanto, de entendimento. Nada compreendendo, vamos criando formas e fôrmas, formando configurações que possam nos salvar.
Assim é o dia 01 de janeiro de cada ano. Feliz Ano Novo! – dizem. Boas Festas! – as pessoas ao nosso entorno desejam, por mero ritual ou de fato com sentimento verdadeiro. O mundo ao redor é vasto, e tantos são os desejos de vida – longa, apaziguada e com saúde.
Há os que desejam dinheiro, muito dinheiro, para si e/ou para os outros. Como se gosta de brincar: dinheiro não é problema, é solução. Brincadeiras à parte, sabemos muito bem que dinheiro sem saúde e sem paz não adianta. Pode ser a rainha ou o rei de um reino qualquer, cujas vidas são vidinhas mesmo como a de todo mundo, mas não deixando de ser importantes. Toda existência é admirável. Pode ser a vida real, de sangue nobre e tudo o mais, de brasão e ouro guardado a sete chaves em cofre luxuoso. Sabemos, e como bem sabemos, para usar aqui um chavão, que dinheiro não traz felicidade. Outra brincadeira: dinheiro não traz felicidade, manda comprá-la. Que comprar que nada! Temos a consciência de que não é bem assim.
Primeiramente, nos atravessa a certeza de que a felicidade não existe. Não existe como uma permanência, uma constante no existir. O que temos são momentos alegres e tristes, os dois sentimentos coexistindo ou se alternando. Dentro do espectro entre alegria e tristeza, vivemos. Certa vez Tônia Carrero foi indagada, numa entrevista, se era feliz. “Sim, diversas vezes ao dia” – ela respondeu com a profunda convicção do que estou falando.
Em segundo lugar, falemos dos momentos felizes. Eles podem até ser comprados. Mas sem dinheiro, tais momentos podem existir e de fato acontecem. Falo de bastante dinheiro, porque para se ter um pouco de dignidade nesta vida faz falta uma cota decente desse bendito ser monetário. O acontecimento da alegria, pois, não depende de materialidades.
Voltemos aos calendários, ao nosso em específico. Agora um Ano Novo, um eterno recomeçar da existência para quem está neste plano físico. Para além de nossas marcações temporais, vivemos. E vivemos esse para além principalmente quando estamos no plano espiritual. Aqui, ainda, aqui em nossa vida vidinha tão boa, vemos todo ano, na virada do dia 31 de dezembro para o dia 01 de janeiro, a possibilidade do recomeço. Daí almejarmos, para nós e para todos, um ano feliz. Necessitamos sonhar com isso.
O ano de 2022, especificamente no meu caso, foi muito denso. Eivado de perdas, quedou-se bastante vazio. Vazio de seres que eu amava e amarei sempre. Venho aprendendo a caminhar sem minha mãe, sem minha mana caçula e sem meu irmão que contava com 08 anos a mais do que eu. Aprender as perdas é lição difícil, porém inevitável. Mergulhado no vazio, busco encontrar nele o tudo, pois os meus continuam comigo, acredito, e porque fui testemunha de que eles precisavam descansar do fardo que estavam carregando. Todos, em nosso corpo físico, temos o momento certo para deixar o fardo quando ele pesa em demasia.
2022 foi também para mim, no curso que segue, um tempo de conquistas, de avanços, no plano pessoal e social. Estou crescendo, todos nós estamos. Eis, portanto, a prova de que vivemos entre alegrias e tristezas, uma coisa equilibrando-se com a outra, mesmo que às vezes a balança penda mais para um lado e contra a nossa vontade.
Vivamos, então, o nosso tempo! Os nossos tempos sentidos das formas mais variadas e possíveis. Vivamos a porta que se nos abre: este 2023 que nos chega e nos encontra prontos para continuar, apesar de todo o cansaço. Viver é necessário.
Instantes de eternidade
21 de Dezembro de 2022, por Evaldo Balbino 1

Ednei, irmão de Evaldo Balbino (foto arquivo particular)
Para meu irmão Ednei Balbino da Silva
★27/07/1970
† 17/11/2022
Fim de noite de sábado. Triste e silenciosa. Você, dolorido, me chamou com voz fraca e rouca. Eu me aproximei do leito semiescuro, ali onde o barulho da grande cidade não chegava. Seu sussurro sumia tanto, que tive que chegar o ouvido esquerdo bem perto dos seus lábios. As palavras saindo com dificuldade, e lágrimas profundas minando dos seus olhos.
“Não tenho medo da morte. Não quero é sofrer e nem ver vocês sofrendo.”
Busquei apaziguá-lo, desejando-lhe força quando na verdade eu sabia que somos tomados de muita fraqueza. Da sua boca, o pedido:
“Quero ir pra casa, pra minha terra.”
Eu lhe dizendo na sequência que para sua casa não seria possível, que ficar num hospital era mais necessário por haver mais recurso. Do fundo da minha agonia, eu ali buscando alívio para sua dor, a psicológica. Porque a dor física, entregue nas mãos de médicos e enfermeiras, já estava, parecia, sob controle.
“Sei que vou morrer: hospital pra quê?”
Eu lhe dizendo tanta coisa, sabendo no fundo que nada está no nosso controle. Uma sensação de incapacidade, o momento exato em que nossa essência falível vem à tona com toda a força, e ficamos sem saber o que fazer, que palavras dizer ao certo, que atitude tomar. Expliquei-lhe da necessidade do hospital, falei do fato de os remédios na veia serem mais eficazes. E acrescentei que, se você quisesse, poderíamos pedir sua ida para o hospital de nossa cidadezinha.
“Isso, quero isso. Na minha terra, perto do pai e de todo mundo.”
Garanti-lhe que faria de tudo para atender ao seu desejo. Conversei com as enfermeiras e depois com o médico de plantão. E seu retorno para nossas raízes foi acordado. Ainda demoraria dois dias e meio para isso ocorrer, mas seu desejo foi atendido.
Na mesma noite ainda, naqueles mesmos instantes, voltei para o seu lado depois de conversar com o médico. E você tomava nova medicação. Morfina quase que sempre, ininterrupta. Sua esposa e filho conversavam, a tevê ligada, sua vida me olhava de modo intenso. Num repente seus olhos e bocas me chamaram atenção para o televisor, onde se dava uma notícia de algo tão comum neste mundo, no nosso país. Num bar da zona sul desta cidade, uma cena de violência. Dois rapazes, à mesa, tinham trocado um beijo, um selo simples, e um deles, quando depois se dirigira ao banheiro, fora espancado por alguns homens que diziam não ser ali um lugar para pessoas anormais. Você só acenou com seu braço fino e roxo mostrando veia sofrida. Acenou, e a boca fraca dizendo forte:
“Isso é muito triste; presta atenção!”
Concordei com gesto e palavras e me voltei para lhe perguntar se você estava com sede, se queria água.
“Um pouco só”.
Tomei da água e lhe matei a sede, sempre eterna. Continuei do seu lado por mais um tempo sem tempo. Vez em quando seus olhos se fechavam em cochilos necessários. Até que, num certo ponto, seus olhos se abriram por saberem que já estava quase na hora de eu sair. Seu filho ficaria na sua companhia durante a madrugada, e sua esposa dormiria em minha casa.
Dois dias e meio depois, na terça-feira, a hora da sua volta. Precisamos sempre voltar. Eu tinha que dar aula às 13h10min, já era mais de meio-dia, e cruzar esta cidade não é fácil. Chegou a hora da despedida. Você me acenou, e eu segurei sua mão fragilizada.
“Me perdoa” – sua boca e seus olhos me disseram dolorosamente.
Inclinei-me sobre o seu rosto, beijei-lhe a testa tão raquítica agora, e lhe disse que não havia nada o que perdoar.
“Por tudo o que te fiz”.
Minhas lágrimas vieram ao socorro das suas. Beijei-lhe novamente, abracei seu corpinho tão apequenado pela enfermidade, e busquei palavras com que arrancar-nos do sofrimento. Argumentei, como São Paulo o faz numa de suas cartas, que agora não éramos mais crianças, que éramos adultos e que tínhamos deixado para trás as coisas de crianças. Você não entendeu a alegoria. Parafraseei o já dito, e lhe expliquei que já tínhamos nos tornado mais maduros, mais atentos às coisas da vida, mais unidos pela experiência que nos aproximara tanto ao longo dos anos. E arrematei: águas passadas não movem moinho.
Naquele instante, vidas inteiras passaram por minha cabeça. A sua vida e a minha. Creio que todo o filme, imenso e sempre inacabado, também lhe atravessou a mente sofrida. Beijei-lhe a esguia face novamente, antes de sair do quarto. Unidos, nós dois.
Fui revê-lo uma semana e dois dias depois. Você estava parado para sempre, deitado sem dor e agonia como águas plácidas não mais movendo moinhos.
As faces de Deus
23 de Novembro de 2022, por Evaldo Balbino 0
Desde a minha meninice ouvi falar d’Ele. O Imenso, o Inabalável Pai que faz tremer o mundo. Os ecos ancestrais como lavoura arcaica, como terra antiga numa lavra inarredável. Palavras do Pai escritas a fogo sobre pedras e a ferro na pobre cerviz humana. E esta pobre nuca, considerada dura pelas palavras duras de profetas, sempre se dobrando sob força tanta.
É desse narrar antigo que escuto vozes de trovão. Ouço vozes de muitas águas tormentosas. Vejo a nudez humana execrada, o perambular de Caim pela Terra, os corpos naufragando os desejos no grande dilúvio. Sinto o abandono de Agar e seu filho no deserto, as mãos do pai Abraão quase imolando o filho ingênuo. Presencio Jacó roubando a progenitura do irmão Esaú e pagando caro por isso. Testemunho José sendo vendido pelos irmãos, Jó sofrendo dores inomináveis, Jonas aflito no ventre do grande peixe. Assisto a homens e mulheres e crianças sendo ceifados em nome duma fé dura e irrecorrível...
Até mesmo depois da Graça maravilhosa do Cristo, ainda ouço a voz de João em Patmos, as bestas do Apocalipse: uma emergindo do mar e outra da terra. Olho com ouvidos dolorosos e amedrontados os selos se abrindo, vejo anjos e homens parecendo animais, escuto as pragas de antanho erguidas de novo e para sempre sobre toda a humanidade perdida em si mesma...
Durante anos a fio fui carregando tudo isso, e as costas me doíam com peso tão insuportável.
No meio de tudo, porém, fachos de luz!
Palavras de amor, cantos de glória, mares se abrindo, homens sendo jogados em fornalha de fogo ardente e dali saindo ilesos, bocas de leões sendo fechadas perante um homem de Deus, o sol retrocedendo em prol daquele que clama, a viúva sendo agraciada e amada no campo, o amor sendo elevado eroticamente nos cantares de muito amar. Cheguei e chego, ouvindo os salmos de louvor, a amar Davi no seu abraço doloroso em Jônatas, os dois sofrendo as dificuldades da vida, Davi chorando a morte inabalável do companheiro.
Dos fachos de luz, os olhos de Jesus. Eles próprios, os olhos, a própria luz em nós descida. O Deus fazendo-se homem, sentindo na carne o que é ser carne, chorando e rindo, comendo e bebendo, louvando e vociferando. O que anda entre humildes e não humildes, o que busca cada ovelha sem olhar sua cor e sua forma. Tudo é ovelha perante os olhos do pastor amoroso. Até pedras clamam, o deserto rebenta em flores, a rocha jorra leite e mel, os braços se tocam e sentem a doce vida em cada poro.
Entre leis pesadas (intratáveis mesmo) e o doce olhar do Deus humano, vim seguindo a senda da vida, vim aprendendo a viver da melhor forma possível. Mas sempre dividido, preso a uma geometria e livre numa imensidão sem fim. Cercado de furores e entregue a amores.
Depois, certa feita, um fiat lux, uma luz acesa! Eu escrevia o último capítulo de minha dissertação de mestrado. E era sobre a presença de Deus na obra da poeta mineira Adélia Prado. Lendo teorias e teólogos, contemplando poemas e os analisando com afinco e afeição, de repente se me revelou a dádiva, o olhar de Deus para o meu corpo pouco e ao mesmo tempo tanto: o conceito de representação me atravessou por inteiro. E desde então, apesar de tanta coisa triste, vi que a vida é mais feliz do que eu pensava. Demorei mais de vinte anos para entender tudo isso! Ao término do meu mestrado, a lucidez.
Tanta claridade (esse brilho necessário, o fulgor mesmo de Deus) cintilou em mim. E a partir daí passei a cantar com mais afinco a canção que diz dos galileus olhando tanto para o céu e buscando ali a pessoa de Jesus. E a resposta ímpar nos ouvidos de quem procura: esse mesmo Jesus que procurais há de vir assim como para o céu o vistes ir.
E assim, amado, me sinto nos braços divinos, nos braços daquele sobre quem o mesmo João do Apocalipse chegou a escrever em seu Evangelho: “Ele, que tinha amado os seus que estavam no mundo, amou-os até ao fim”. Esse mesmo e sempre João que registrou um único mandamento: “Um novo mandamento vos dou: Que vos ameis uns aos outros; como eu vos amei a vós, que também vós uns aos outros vos ameis”.
Agora, permanecido no amor divino, não me armo e amo a todos. E as faces de Deus ficaram tão simples, pois sei que não passam de retratos que as mãos humanas pintam. Toda palavra tem o rosto de quem a profere. Assim sentindo, mais do que pensando, continuo mergulhado em amor tão fundo e me sinto frutificando para sempre. A videira verdadeira floresce em nós.
Ana do Sô Luís
25 de Outubro de 2022, por Evaldo Balbino 0
Era amiga da Maria da Ritinha. Amizade dessas em que as pessoas são unha e carne uma com a outra.
A Maria com sua vida vidinha muito importante, a mãe já falecida, e ela tendo que aprender a se virar pra viver.
A Ana, órfã desde sempre. Eterna criança na sua mente ingênua, corpo de mulher e intenções de anjo: nunca deixou de lado suas bonecas da infância. A meninice estendendo-se eternamente, o que é saudável dentro do que chamam equivocadamente de loucura.
Uma, órfã de mãe e aprendendo a viver. Outra, órfã do nada, sempre angelical. As duas vivendo nesta vida onde todos temos que passar pela mesma aprendizagem. Viver é lição cotidiana. E quanto mais aprendemos, mais ainda temos que aprender. Somos eternos alunos buscando pela luz ao fim e ao cabo.
Ninguém sabia o nome completo da Ana. Seguido sempre do nome do pai adotivo, o viúvo Sô Luís. Desde que se entendia por gente, ela viu o pai solitário, sem a esposa já morta num quando já muito passado.
Ana do Sô Luís: modo esse familiar e interiorano de se conhecer alguém. Modo afetivo nos dando a sensação de não estarmos perdidos num mundo imenso onde se registram friamente alcunhas em cartórios, em pias infinitas de batismos sem espírito, sem fôlego que nos salve no meio da multidão solitária.
E espírito a Ana dava e vendia. Trabalhadora, brincalhona que não acabava mais! Quando cismava com alguém, repetia várias vezes a mesma brincadeira.
Assim foi, por exemplo, com os meus tios Lia e Francisco, noivos às vésperas do casamento. Eles noivando e a Ana dizendo, galhofeira, “A Lia vai casá com o Francisco; tudo preguiçoso, e vai cumê folha de mamona.”.
Quando minha mãe esperava o Nonô, meu irmão mais velho, lá vinha a Ana ridente e bonachona: “A Naura tá barriguda aí; daqui um cadiquinho vai tá aí!”. E dava risada alisando com os olhos a barriga de minha mãe, mulher jovem nos seu 18 anos esperando o primeiro filho.
Na sua língua enrolada, a Ana do Sô Luís enredava as vidas todas ao seu redor e a sua própria. Falava bastante, de modo alegre. Dizia “Naura” em vez de “Laura”, os fonemas borbulhavam saltitantes e tresloucados na sua boca. E com letras tontas na língua falada ao vento, ela ia tecendo malha disforme, mas com forma própria de quem vivia a vida de modo pleno, sem peia, sem medo.
Juntava-se com sua amiga, a Maria da Ritinha, e iam ambas a fazendas pedir mantimentos. Nas porteiras chamavam, batiam palmas pra gente e bicho. E não se intimidavam com o latir dos cachorros no terreiro nem com os olhos de vacas e bois pegadores nos pastos. Afinal, os cães e os gados do mundo têm um ofício para cumprir. “Lati e mugi é o fado deles”, dizia a Ana com largos sorrisos. Passavam firmes no seu propósito: o de prosear e provar de gostosuras que lhes eram ofertadas, e o de depois saírem com os embornais cheios de cereais, verduras, carne e mais mantimentos para manterem o dia a dia.
As amigas brigavam muito, mas se amavam. Como crianças que ficam de mal e pronto! Tudo passa num repente e, quando vamos ver, já estão brincando entre si. Ora discutiam ora contavam caso.
Depois das discussões, suas conversas tornavam-se águas plácidas como eram as do ribeiro de Santo Antônio. Por falar no nome desse Santo, elas nunca pediram a ele um marido. Simplesmente viviam com liberdade, sem esse tipo de preocupação. Havia um preconceito contra moça não prendada que ainda tinha muito o que aprender e contra moça sempre menina numa chamada “loucura”. As duas, no entanto, viviam para além desses juízos desajuizados. E viviam felizes em meio à aspereza da vida.
Nos momentos de paz, buscavam sair da lida da costura, pois a Maria aprendia cada vez mais a fazer isso. E ambas brincavam com bonecas, as filhas eternas que elas amavam.
Quando proseavam com outras pessoas, suas narrativas eram longas, simples como simples eram as narradoras, e belas como bela é a vida. Suas histórias eram tantas que aturdiam quem as ouvia. Mas isso era um ficar tonto cheio de coisa boa, de imaginação que nem córrego caudaloso de peixe e vida.
E era tanta a vida que as duas tinham e exalavam, que até hoje estão na memória de muita gente. Tanto que as recrio aqui, nestas minhas linhas que nunca findam, também caudalosas.
A vida nunca acaba. É eterna mais do que a morte.