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Antônio Gonçalves Pai

18 de Maio de 2022, por Evaldo Balbino

Eis aqui mais um retrato, este modo que busco para refazer a vida antes que a minha própria vida se desfaça. Com palavras vou arranjando perfis, vou delineando vidas cujo rumor nunca cessa. Falar é nunca calar a voz, é tirar da campa do silêncio a alma e o corpo de que nos fazemos...

Tropeiro desde cedo, o Antônio Gonçalves, o pai, fez ainda jovem sua casa de alvenaria na estrada que leva ao Capão das Onças. Hoje a chamam de casa do Ladico, mesmo já tendo este neto do antigo tropeiro também já falecido. Dos herdeiros, Ladico comprou a casa, que hoje ainda se ergue no Ribeirão de Santo Antônio. De parede firme e sobrado ancestral, de janelas vivas porque desejosas de atravessarem o tempo, de cumeeira sendo o céu de muitas vidas. Casado com dona Cota, vieram ao pai Antônio Gonçalves oito filhos: Missia, Maria, Zulmira, Antônio Gonçalves Filho, Jesus, Chico Cota (meu avô), Zé Cota e João Cota.

De frente da sua casa desencilhavam as cavalgaduras e pediam pouso. Pernoitavam ali, nos quartos tantos, e seguiam seus destinos no dia seguinte. De noite, prosa e café, leite e mandioca, e a luz mortiça da lamparina desenhando sombras imensas pelas paredes e empretecendo o cimo onde aranhas faziam, escondidas, suas moradas.

Também de frente da vivenda, quem não seguia para o Capão das Onças, mas rumava pela estrada subindo o morro, alcançava o cemitério a céu aberto, as cruzes orando ao tempo, o muro simples, as sepulturas não engalanadas, mas austeras e simples como todos ali eram. As flores eram vivas de início, até o dia em que ninguém se lembrava mais de as levar aos túmulos.

A casa, pois, ainda existe. Também alguns bisnetos, muitos trinetos e tataranetos. Retrato do velho Antônio Goncalves, nenhum. Devo fazer aqui um esboço. Isso digo pela certeza de que o que sempre fazemos, escrevendo, é reconstrução da vida, mesmo estando a sempre vida sempre viva diante de nós: flor para a eternidade. A palavra esbarra na coisa, mas não chega nunca a ser a coisa.

O velho tropeiro mais viajava do que ficava em casa. Esta era da mulher e da prole feminina. E todas, mãe e filhas, sem nenhuma exceção, na faina do dia a dia, na lida diária sem fim.

Nas tropas, o comando era do Antônio Pai, e com ele os filhos trabalhavam diligentemente. Inclusive o Antônio Filho, o não cônscio de que um dia, já com matrimônio e filhos, seria atravessado por facadas no adro da capela. Os acontecimentos são imprevisíveis, como imprevisíveis eram os fatos que poderiam suceder-se nas longas viagens tropeiras. Chuva, sol, calor e frio, noites longas e inacabáveis, as animálias assustando-se geralmente com lobos e de vez em quando com uma ou outra onça tresmalhada pelo mato em busca de presa e sobrevivência. Alguns dos homens sempre tinham que ficar na vigília. Do contrário, encontrariam uma rês ou um cavalo a menos na manhã vindoura.

Antônio Gonçalves pai, pai de mil homens, pois hoje conheço um mundão de seus descendentes, sonhava sonhos para seus filhos e via nos netos verdadeira miríade de castelos.

Não sabia ele que a Missia do Zé Martinhano e que a Maria do João Martinhano permaneceriam no Ribeirão até seus últimos dias, que a Zulmira do Domingo Viaco terminaria os seus dias perto do Curralinho dos Paula, que o Antônio Gonçalves Filho seria esfaqueado, que o Jesus jazeria morto sob um câncer, que o Chico Cota acabaria sobre uma cama com o estômago tomado também pelo câncer, que o Zé Cota morreria pelos lados do Ismiranda e que o João Cota (mais distante ainda) feneceria pelas bandas de Melo Franco.

Quanto aos netos, também nada pôde fazer para além do desejo. Se as vidas dos filhos são corda fora do controle de nossas mãos, as dos netos e de outras mais gerações nos fogem completamente. O que podemos saber é que todos estão dentro da mesma vida e da mesma morte, nesta sinfonia que nos rege a todos, com diferenciações sempre iguais. Variações sobre o mesmo tema. E o tempo, variável, mutante e frio, atravessa a tudo e a todos, com seu coração desfeito, com sua existência esgarçada sobre a nossa, com nosso ser diluindo-se pelas estradas inelutáveis. O que nos restam são lembranças. E o máximo que se nos dá é contar o tempo, falar dele, refazer os caminhos que ele desfez. É para isso que Deus nos deu memória, esta estrada em construção contínua, esse retorno com outros pés pisando o nunca mais pisado. Voltar não é saudosismo apenas, mas também desejo de uma vida eterna.

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