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Antônio Gonçalves

14 de Outubro de 2021, por Evaldo Balbino

Antônio Gonçalves, avô do meu pai. O que dele sei é de tanto ouvir falarem. Duas cenas fortes o envolvendo me habitam a memória lavrada por palavras alheias e minhas.

Numa, ele coloca o meu pai, ainda com seus sete anos, no lombo de um cavalo. E diz rompante que o neto será padre, que vai enviá-lo para Mariana. Reafirma às pessoas e ao vento que o filho de sua filha se tornará um pároco lá na cidade dos sinos que plangem dolentemente.

Na outra cena, vejo-o no colo da sua esposa, a minha bisavó Olívia, ela chorando e segurando-o em seu seio. Seus braços retalhados por facadas tantas, seu peito com perfurações, e o sangue vivo morrendo e ensopando a sua camisa suada de lavoura e trabalho.

Meu pai se lembra das promessas quanto ao seminário. E o desejo que ele menino tinha de ser pomposo como os padres, a batina escura dando ao corpo seriedade, as pregações na capela e até mesmo nas igrejas lá da vila, principalmente na do Rosário. Por Nossa Senhora do Rosário, uma devoção sem conta.

Mas o seminário nunca existiu para o garoto. O avô o carregava sim sobre o cavalo, ensinava-lhe desde cedo a ser tropeiro, a arrear os equinos, a fazê-los trotarem pelas estradas do Ribeirão. Da venda do Antônio Mariano, vinham ao neto balas redondas de dar gosto, inesquecíveis para a boca infantil namorando doces e palavras saborosas. Os carinhos do avô e os sonhos futuros para o infante morreram um dia no adro da capela.

Na casa do Antônio Gonçalves, muito jubileu. Farta gente de outras bandas ia aos bailes do povoado e pernoitava na habitação antiga. No porão, sob o assoalho, fantasmas ancestrais ficavam dormindo ou balbuciando entre arreios, cangas e mais bugigangas. Não faziam eles, porém, mal algum aos vivos, e sabiam da beleza da vida e conheciam dela as agruras. E talvez rissem as assombrações, quando ouviam os vivos dizerem da existência de almas penadas. Quem pena mesmo são os vivos, pensavam os mortos ali no porão.

Num dia festivo no adro da capela, o povoado e mais outros ali estavam em peso. Poeira densa levantava-se do chão, pois, entre as barracas com prendas para arrecadamento de esmolas, pernas dançavam ao som de violas e andavam de um lado para outro. As mesmas pernas se namoravam. As casadas, discretamente, pois os olhos só podiam de través ensaiar uma pulada de cerca. Os olhos não têm cerca. Já as pernas solteiras, essas andavam sem eira nem beira, sem canga. Namoradeiras elas.

Eis que o Geraldo (tio do meu pai e filho do Antônio Gonçalves), jovem primaveril buscando flores aromais, se engraçou com certa moça entre tantas. Ela, todavia, era também demandada por outro rapaz. Daí a confusão, a briga entre os moços, a violência física. O tio do meu pai saiu ferido.

O vô Gonçalves não participava do folguedo no adro nesse dia. Era muito do seu gosto um baile sim, mas nessa hora ele estava, não muito longe, numa de suas lavouras trabalhando. Chegou-lhe por uma das filhas a notícia de que bateram no seu filho. Furioso, largou ferramentas e foi averiguar o acontecido. Chegou entre as pessoas já gritando, porque uma das meninas dos seus olhos estava num canto com o rosto machucado por socos. “O que bateu no meu filho que venha!”.

O trovão de sua voz levantou poeira, e do redemoinho o Coisa-Ruim se ergueu indômito. Um senhor seu compadre foi na sua direção já com uma faca em riste. Meu bisavô foi se desvencilhando dos golpes e dizendo assustado: “Faca não, compadre!”. Esse senhor era pai do outro pretende da moça que estava sendo galanteada; o rapaz aspirante que tinha, juntamente com os colegas, espancado o tio do meu pai. Eram compadres os dois homens, mas parece que alguma rixa já existia entre ambos.

Tudo foi muito rápido, sem que houvesse tempo para intervenções alheias. Mesmo assim os detalhes se fixaram na mente do menino de oito anos que já era o meu pai. Uma cena eterna que até hoje acontece. Os braços aflitos do meu bisavô em movimentos de defesa e ganhando facadas, seu corpo se afastando, depois o baque contra uma ribanceira, os dois escudos humanos já pendidos e ensanguentados, o peito exposto à morte, as perfurações, o sangue do âmago exalando morte, a queda do homem, a fuga do atacante, a esposa Olívia correndo na direção do marido, seu corpo feminino e forte dobrando-se sobre ele e pegando-lhe a cabeça ao colo. Os últimos suspiros do meu bisavô.

E o meu pai, menino, vendo com olhos cheios d’água a terrível cena imorredoura. Há lembranças dolorosas que o tempo não mata.

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