Foi Nietzsche quem uma vez escreveu: “O homem mais sábio seria o mais rico de contradição, o que teria, por assim dizer, antenas para toda espécie de homens, e vez por outra momentos de grandiosa harmonia”. Aparentemente iguais a nós mesmos, somos, entretanto, seres de faces deslizantes. Tateamos nossas fisionomias, sempre na superfície, olhando-nos no espelho cotidiano para fingirmos que algo é visto. Com mais rugas ou maquiagem desfeita, com aquela olheira surgida do nada, com o cabelo por cortar ou demasiado curto, pensamos que estamos diante de nós e não dos nós que atam nosso entendimento.
Precisamos de certas ilusões. Construímos mecanismos para nos ludibriarmos, para brincarmos seriamente com a vida e assim podermos vivê-la. Iguais à criança no seu faz-de-conta, à mulher no seu decote olheiro, ao homem no seu álcool e jogo ou ainda às mãos que varrem casas no medo da poeira – iguais a todos nos seus atos somos nós. Eu, de minha parte, sou estes que se escutam e escutam para escrever.
São Paulo, por exemplo, já dizia que, “agora, vemos como em espelho, obscuramente; então veremos face a face. Agora, conheço em parte; então, conhecerei como também sou conhecido”. Protelando o entendimento ou o arrancando de um futuro utópico para as nossas terras de agora, construímos narrativas, erigimos nossos castelos. Há os que se contentam em habitar palafitas, sem a preocupação de que todo alicerce é frágil. Se não é a inconstância da água que nos mantém sobre um apoio, será a areia a fingidora que nos ajuda. Sim. Tanto castelos quanto palafitas são nossas construções necessárias. Uns e outras são uma coisa só: enredos, traçados, paredes que pensamos de concreto para o estabelecimento de nossos limites.
Tentamos ser aquela horta que muitos sonham e buscam praticar. Aqui será o jirau com ramas de chuchu sobre ele se alastrando; ali os pés de couve rodeados por salsas e cebolas bem comportadas na sua existência verde; acolá instituiremos algumas variedades do pomar, tais como mamões maduros num pé, limões azedos no outro, laranjas se oferecendo entre galhos. Não faltará o galinheiro, bem delineado entre telas e moirões. Um galinheiro separado de todo o resto, já que os pés de galinha não poderão em hipótese nenhuma desmanchar na terra toda harmonia sonhada. De asas cortadas, as aves ficarão confinadas no espaço que lhes compete. O chiqueiro estará mais além, com sua sujeira distante da higiene que presumimos nos habitar. Do mesmo modo não faltarão as plantas que curam: funcho, macelinha, erva-cidreira, carqueja, boldo, arruda e outras. Caso possível, também importaremos das matas inférteis para a nossa horta o poderoso assa-peixe, sempre pronto a depurar o nosso sangue, a nossa vida, a nossa alma.
Cada coisa como a linda flor, beleza que nos faz falta, beleza catalogada perante nossos olhos: aqui o caule, ali as pétalas, mais abaixo as raízes se perdendo no seio da terra. E que essas raízes não se mostrem à luz do dia. As ramificações da vida nos confundiriam, colocariam à prova os nossos projetos de ordem. Não somos sábios para entender a raiz. Não somos capazes de hortas em orgia. Estas existem, mas incomodam a todos os que desejamos vassouras e enxadas, essas ferramentas na sua enfadonha tarefa de limpeza e destruição do joio no meio do trigo.
Assim, cada coisa em seu lugar, como o tenaz desejo de termos alguns ora-pro-nobis no canto daquela mesma horta sonhada. De possuirmos aqueles cactos com suas flores brancas, miolo alaranjado e folhas como pontas de lança. Aqueles cactos que nos protegeriam a horta e nos dariam alimento. As cercas vivas ao nosso redor, como antes cercavam, lá nos tempos coloniais, algumas igrejas mineiras em suas ladainhas sem fim: Sancta Maria, ora pro nobis / Sancta Dei Genitrix, ora pro nobis / Sancta Virgo virginum, ora pro nobis / Mater Christi, ora pro nobis / Mater divinae gratiae, ora pro nobis...
Não é à toa que temos esse desejo. Um ora-pro-nobis é mais que alimento; é proteção. Brotam da terra, como pontas de lança, as nossas litanias. Rogar é um dos modos de esconjurarmos as ameaças, os esfacelamentos que nos deixam sem território. Esfacelamentos de que, sabiamente, Satanás também tinha consciência. Ele já sabia de tudo isso e uma vez falou ao Cristo que o exorcizava: “Legião é o meu nome, porque somos muitos”. Eu, de minha parte, não sei se chego a ser dez mil em um, mas sei que sou vários.
As geografias desnorteadas
12 de Setembro de 2009, por Evaldo Balbino