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Bisa Cota

16 de Marco de 2022, por Evaldo Balbino

Filhas e filhos criados, crescidos, casados. Eles também tiveram seus filhos, os quais, do mesmo modo, fizeram florescer toda uma prole. Num canto, a roda de fiar, sem movimento. A voz, antes rezadeira de terço e cantadora nos bailes, agora sem olhar ao redor, sem mirar o mundo que a jogava fora como se joga uma tralha num quarto de despejo. O tempo passando, a quentura do sol esfriando, as noites e suas cores sem cor estendendo-se sobre o povoado do Ribeirão de Santo Antônio.

Nuvens inevitáveis correndo o céu, dispersas, sem destino. Ovelhas sem forma em suas sendas sem rumo, sem um pastor que pudesse pastoreá-las. As horas correndo lentas, cansadas de passarem. Mesmo sabendo que uma hora acabariam, sentiam-se as horas num caminho espinhoso, num andar exaustivo e eterno. De uma eternidade sem remédios.

Os olhos da velha Cota, parados, a tudo e a todos viam sem consolo. Ela, uma velha senhora, a matriarca de muitos, porém encostada num canto, sem serventia, sem nada mais valer para todos os que saíram do seu antigo ventre. O nascedouro sendo esquecido aos poucos. Assim como olhamos para fresca mina abençoada e, depois de tanto olhar para ela no cotidiano, nos acostumamos com a vista e perdemos o amor primeiro. Ou então continuamos amando, porém de um modo mais morno, um amar atravessado pelas preocupações da nossa própria vida. Cada qual buscando atentar-se ao próprio umbigo.

Após morar em diferentes casas, de filhas e filhos, passara a dona Cota a viver com o filho Chico Cota e a nora Laurinda. Dava-se bem na casa, porém os diversos afazeres se multiplicavam, cresciam como erva daninha sufocando a vida. O Chico carreando nos longes, a Laurinda na lida diária duma labuta que não terminava nunca. Até mesmo o cuidado com os animais, os de pequeno e os de grande porte, ficava por conta da esposa que, cada vez mais, não tinha tempo para assistir a sogra. Assim também os netos, cada um cuidando de sua vida.

Não era maltratada a matrona. Sem poderes, no entanto. Ficava na sua cadeira de balanço, parada diante da vida balançando, para um lado e para o outro. A vida já não dando mais conta dela, já lhe dizendo que ela era mulher que vivia para além da medida humana.

Não demorou muito para que o seu idoso corpo se entregasse mais às próprias fraquezas. Demandando cuidados urgentes, sua presença ali na casa se tornou mais dificultosa, e cada vez mais. Carecia ela de atenção, o que o filho, a nora e os netos não podiam dar a contento.

Então decidiram que ela fosse viver com outra filha, a tia Missia. Ali, talvez, teria mais atenção, o cuidado necessário à sua avançada idade.

O dia da partida para a outra casa chegou. A trouxa com as roupas idosas foi amarrada. As antigas roupas saíram da canastra, foram dobradas pelas mãos da vó Laurinda, e a sogra a tudo vendo sem concordar.

Depois, o filho Cota pegando a mãe nos braços, erguendo seu corpo leve e frágil pra riba do carro-de-boi, as mãos anciãs segurando contrariadas os fueiros que estavam ao seu alcance. O carro leve, levando somente o corpo da mulher, sua trouxa de roupas e a roda de fiar que não mais fiava, mas que os olhos envelhecidos namoravam como se namora insistentemente a própria vida.

O carro-de-boi foi subindo pela estrada onde todos se perdem. Não cantava, pois não estava pesado de tantas coisas materiais assim. Carros apertados é que cantam. Mas o que levava a bisa Cota não estava apertado, muito menos carregado de milho ou qualquer outra carga de muito peso. Sobre ele ia sim muita vida: um desejo de eternidade e uma voz pra canto e terço. E a vida, os sentidos da vida, têm peso, cor e forma. Mas não o peso comezinho das coisas concretas.

A voz da Cota, desolada, soltou seu uivo. Foi lavrando no ar seu canto de mulher vivida por demais:

 

Neste mês de maio,

Mês de amargura,

Lá vai a Cota Veia

Morá na sepultura.

 

Na casa da Missia, passaram-se desde então três meses. Exatos dias para os olhos da Cota irem ficando aos poucos embaçados. Embaciados, numa secura sem vida, os que antes existiram abertos para o mundo, agora se entregavam ao fechamento para sempre das pálpebras. Nenhum canto, alegre ou triste, saiu mais de seus olhos. Nenhuma visão do mundo vasto exalou de sua boca. O silêncio tomou conta definitivamente de seu corpo.

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