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Caminhos

13 de Dezembro de 2020, por Evaldo Balbino

Quase toda a minha família congregava numa igreja lá no Ribeirão de Cima. Nas noites de sábado e nas tardes de domingo.

De noite eu não via quase nada, porque não tinha luz elétrica no povoado. Não via com os olhos materiais.

Mas durante o dia sim. Meus olhos que a terra espreita eram sóis iluminando a vida. E viam muita coisa. Mato, bichos, gentes, córregos, morro pra subir e descer.

Havia dois caminhos pra irmos à igreja, isso se pensarmos em aberturas já feitas porhumanos, como estradas e trilhas. Querendo burlar essas duas sendas, era possível subir pelo pasto acima da nossa casa e atalhar um pouco.

Uma das passagens usuais era lá pra baixo, passando de fora das casas da tia Tuquinha, depois da Sá Bilica e da tia Fiinha. Mais além da estrada, ao lado do moinho coletivo da parentela, vinha a casa da Teresa do Roberto. E, por fim, subindo uma trilha perto da cachoeira do Tibúrcio, chegávamos por trás da igreja, passando acima da casa do irmão João.

A outra possibilidade era pela estrada de cima mesmo, a principal que ligava os três Ribeirões: o de Baixo, o do Meio e o de Cima. Nós morávamos no do Meio. Íamos subindo por essa carreira forrada de cascalhos, os pés escorregando neles, e ao lado uma cava sombria de dar gosto pra uma história qualquer de terror. Meus olhos subiam pela estrada iluminada, mas desejando medrosos pisar o chão da cava carrancuda. E os causos macabros sempre olhando meus passos, abraçando meu corpo de menino.

No caminho de baixo também tinha perigos, e muitos. Um deles foi num domingo bem certeiro. Minha mãe terminou atarantada de arrumar a cozinha do almoço, se arranjou com simplicidade e me levou junto dela. Meu pai não estava em casa, e meus irmãos curtiam a modorra duma tarde domingueira, sol a pino, calor de morte. Também pudera! Culto às duas horas da tarde neste Brasil dos trópicos, só Deus na causa mesmo! E como precisamos de Deus nesse dia, minha mãe e eu!

Sobre a porteira depois da casa da tia Fiinha, um cipó esverdeado e grosso jazia estirado. Minha mãe viu. Eu até então não tinha visto nada, pois meus olhos ouviam atentos e prazerosos a bulha da água descendo pro córrego da Sá Bilica. No exato momento em que as mãos de minha mãe foram abrir a porteira, o cipó se moveu. No susto, ela retrocedeu o corpo e me puxou consigo pelas mãos. O cipó era uma cobra grande tomando o sol da tarde. Incomodada com o nosso movimento, a serpente foi saindo pra horta da tia. E nessa saída de matrona que comera e não gostara, ela foi indo devagar, em câmera-lenta, sem pressa nenhuma. Isso, com certeza, era pra azucrinar a pressa de minha mãe, que tinha incomodado seu sono ofídico. Ofendida, custou-lhe nos dar caminho. Mas deu, mesmo que na lentidão.

Pela estrada descendo ao lado da cava, era bom apanhar alecrim-macho na volta da igreja. E aquele cheiro de verde, porque cor tem cheiro certo!Com esse alecrim a gente fazia uma touceira em torno da ponta de um pau, amarrava com embira e, num passe de mágica, produzia uma vassoura. E terreiro pra varrer era o que não faltava lá em casa. A vassoura de alecrim indo e vindo, a poeira se levantando, a sujeira sendo jogada pra qualquer banda ou juntada pra se jogar bem longe.

Na estrada de baixo que dava até na trilha perto da cachoeira do Tibúrcio, tinha o moinho. Mundo vasto onde eu triturava pedaços de vivências. E se contava que no debaixo da moenda, bem junto do rodízio, vivia uma assombração. Com o maquinário parado de noite, ou nas sombras estendidas de tardes silenciosas, vinha de lá um choro, um lamento, um balbucio sem consolo. Por causa desse fantasma, eu nunca que ia sozinho no moinho. Tinha que ser junto de um alguém adulto pra me proteger. Os medos são enormes e carecem de arrimo.

Na estrada de cima tinha o mata-burro, onde burro não passava, mas passavam gente e jipe. Inclusive um tal de jipe do farol azul que andava só de madrugada e que era na verdade outra assombração. Prova disso foi um tio meu que, estando a cavalo, encontrara numa antemanhã escura e nebulosa o tal do jipe, tentara desviar dele e não conseguira. Na iminência da batida, o seu susto de olhos abertos vira o carro de farol azulado passando por cima dele, atravessando cavalo e homem como se fossem ar. Olhando pra trás, o tio vira que lá ia o carro-fantasma seguindo seu caminho espectral. Resultado da cena: um homem todo urinado e um cavalo empacado no meio do caminho.

O menino que eu era e sou amava esses dois caminhos. Lá na igreja, o homem do púlpito só falava de céu ou de inferno. Coitado! Acho que ele não conhecia os meus caminhos tão ricos.

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