Na crônica de janeiro deste ano falei de um texto da Clarice Lispector, “Das doçuras de Deus”, que versava sobre uma empregada sua, a Aninha, ou melhor, Aparecida. Lispector nos contou, nesse texto, das manias de Aparecida, dos seus gostos supostamente duvidosos em se vestir, das suas preferências literárias. Mas só quero retomar aqui uma informação: Aparecida, relatou-nos Clarice, enlouqueceu. E sua loucura me fez escrever a crônica de janeiro. Mas eis que, depois de tê-la escrito, eu me deparei com outra crônica de Clarice, e com um título também belíssimo de nos apaixonarmos: “De outras doçuras de Deus”.
A escritora, nesse segundo texto, aparentemente não deixa os fatos sem andamento, não abandona Aparecida numa loucura em aberto. Relata-nos que, passado um tempo, Aparecida bateu à sua porta. Clarice assustou-se, pois a doméstica estava internada num hospício. Como poderia estar ali, na sua frente? Mas ela parecia melhor. No hospital, lembrara-se dos nomes dos familiares de Clarice e do endereço, e pedira para visitar a família e buscar um dinheiro que lhe era devido. Indagada, obviamente, em relação a como conseguira sair do hospital, explicou a mulher que aquilo era um teste: deixaram-na sair para verificarem se ela dava conta do mundo lá fora, com autonomia. De fato parecia mesmo melhor. Estava, segundo Clarice, “mais bonitinha, à custa de ter engordado com tantos soros, e tomou três choques elétricos”.
Após pagar a ex-empregada, Clarice surpreendeu-se com a fala que a sua cozinheira dirigiu à mulher, também a testando: “Conte para mostrar que você sabe contar”. E não é que Aparecida contou direito mesmo!? E mais: além de contar, verificou que Clarice lhe pagara o mês todo e agradeceu.
Penso que Aparecida estava preparada de fato para a vida, e não por apenas saber contar o dinheiro que lhe fora dado, mas também e principalmente por estar pronta para o mundo. E estar pronto para mundo é isto: é estar pronto para a vida e seus percalços. E na preparação de Aparecida, ela até se preocupou com a literatura de Clarice, com as palavras em estado de arte. Tanto se preocupou, que desfechou a pergunta: “A senhora ainda está escrevendo?”.
Essa pergunta comoveu a escritora. E também, devo dizer, me comoveria, se eu estivesse ali, diante de tais palavras de uma mulher supostamente enlouquecida.
A casa de Clarice ficou alegre, como uma dádiva divina. Na reta final da conversa, Aparecida (que na verdade se chamava Aninha) disse que agora queria ter um namorado e mesmo ir para um programa de televisão que arranjava casamento. E ainda acrescentou que no hospital descobriram as suas potencialidades e que, depois que tivesse alta, iria ficar lá trabalhando por uns tempos.
A crônica de Clarice termina com tais informações. Como eu disse, a autora, aparentemente, não deixou de dizer nada.
Mas ainda não sei, já passados uns 36 anos desde o relato desses fatos, se Aninha realmente teve alta, se ela de fato chegou a trabalhar no hospital. Se ela chegou a ter um namorado ou se chegou a apresentar-se num programa televisivo para arranjar casamento. Terá casado mesmo a nossa Aninha?
Será que ela de fato “desenlouquecera”? E o que é a loucura num mundo onde parâmetros são poucos, mesmo que supostamente claros e científicos? Era realmente louca a nossa Aparecida? E olha que ainda pensava em literatura mesmo depois de internada, tanto que perguntou a Clarice pelos livros que esta escrevia. Gostava de livros complicados, a nossa louca. Se isso é loucura ou não é loucura, não sei. Mas essa mania eu quero para mim.
Os livros complicados, como todas as coisas complicadas, têm aguilhões que nos incomodam, mas que são necessários à vida, para que possamos exercitar nela toda e qualquer busca. Incomodados, devemos nos mover para diante. Numa comparação horrenda, pode-se dizer dos bois sob as cangas. Emparelhados e em filha indiana, eles são forçados a ir para frente, pois são cutucados, incomodados pelos boiadeiros que, infelizmente, chegam até a exagerar com os ferrões.
Se é impossível saber da loucura de Aparecida, como de qualquer loucura, é possível saber pelo menos que ela era uma mulher simples. O que ela queria é o que todos nós queremos. Nas coisas simples da vida (como por exemplo namorar, casar, ter filhos, contar um dinheiro, sentir-se mais bonito nem que seja um pouco, trabalhar), nessas coisas mesmo tão corriqueiras é que buscamos uma trilha. Mesmo que sinuosa, nós desejamos encontrá-la para não perdermos o rumo. O rumo da vida. Da vida complicada, mas doce.