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De outras coisas complicadas ou As doçuras de Deus

12 de Marco de 2013, por Evaldo Balbino

Na crônica de janeiro deste ano falei de um texto da Clarice Lispector, “Das doçuras de Deus”, que versava sobre uma empregada sua, a Aninha, ou melhor, Aparecida. Lispector nos contou, nesse texto, das manias de Aparecida, dos seus gostos supostamente duvidosos em se vestir, das suas preferências literárias. Mas só quero retomar aqui uma informação: Aparecida, relatou-nos Clarice, enlouqueceu. E sua loucura me fez escrever a crônica de janeiro. Mas eis que, depois de tê-la escrito, eu me deparei com outra crônica de Clarice, e com um título também belíssimo de nos apaixonarmos: “De outras doçuras de Deus”.

A escritora, nesse segundo texto, aparentemente não deixa os fatos sem andamento, não abandona Aparecida numa loucura em aberto. Relata-nos que, passado um tempo, Aparecida bateu à sua porta. Clarice assustou-se, pois a doméstica estava internada num hospício. Como poderia estar ali, na sua frente? Mas ela parecia melhor. No hospital, lembrara-se dos nomes dos familiares de Clarice e do endereço, e pedira para visitar a família e buscar um dinheiro que lhe era devido. Indagada, obviamente, em relação a como conseguira sair do hospital, explicou a mulher que aquilo era um teste: deixaram-na sair para verificarem se ela dava conta do mundo lá fora, com autonomia. De fato parecia mesmo melhor. Estava, segundo Clarice, “mais bonitinha, à custa de ter engordado com tantos soros, e tomou três choques elétricos”.

Após pagar a ex-empregada, Clarice surpreendeu-se com a fala que a sua cozinheira dirigiu à mulher, também a testando: “Conte para mostrar que você sabe contar”. E não é que Aparecida contou direito mesmo!? E mais: além de contar, verificou que Clarice lhe pagara o mês todo e agradeceu.

Penso que Aparecida estava preparada de fato para a vida, e não por apenas saber contar o dinheiro que lhe fora dado, mas também e principalmente por estar pronta para o mundo. E estar pronto para mundo é isto: é estar pronto para a vida e seus percalços. E na preparação de Aparecida, ela até se preocupou com a literatura de Clarice, com as palavras em estado de arte. Tanto se preocupou, que desfechou a pergunta: “A senhora ainda está escrevendo?”.

Essa pergunta comoveu a escritora. E também, devo dizer, me comoveria, se eu estivesse ali, diante de tais palavras de uma mulher supostamente enlouquecida.

A casa de Clarice ficou alegre, como uma dádiva divina. Na reta final da conversa, Aparecida (que na verdade se chamava Aninha) disse que agora queria ter um namorado e mesmo ir para um programa de televisão que arranjava casamento. E ainda acrescentou que no hospital descobriram as suas potencialidades e que, depois que tivesse alta, iria ficar lá trabalhando por uns tempos.

A crônica de Clarice termina com tais informações. Como eu disse, a autora, aparentemente, não deixou de dizer nada.

Mas ainda não sei, já passados uns 36 anos desde o relato desses fatos, se Aninha realmente teve alta, se ela de fato chegou a trabalhar no hospital. Se ela chegou a ter um namorado ou se chegou a apresentar-se num programa televisivo para arranjar casamento. Terá casado mesmo a nossa Aninha?

Será que ela de fato “desenlouquecera”? E o que é a loucura num mundo onde parâmetros são poucos, mesmo que supostamente claros e científicos? Era realmente louca a nossa Aparecida? E olha que ainda pensava em literatura mesmo depois de internada, tanto que perguntou a Clarice pelos livros que esta escrevia. Gostava de livros complicados, a nossa louca. Se isso é loucura ou não é loucura, não sei. Mas essa mania eu quero para mim.

Os livros complicados, como todas as coisas complicadas, têm aguilhões que nos incomodam, mas que são necessários à vida, para que possamos exercitar nela toda e qualquer busca. Incomodados, devemos nos mover para diante. Numa comparação horrenda, pode-se dizer dos bois sob as cangas. Emparelhados e em filha indiana, eles são forçados a ir para frente, pois são cutucados, incomodados pelos boiadeiros que, infelizmente, chegam até a exagerar com os ferrões.

Se é impossível saber da loucura de Aparecida, como de qualquer loucura, é possível saber pelo menos que ela era uma mulher simples. O que ela queria é o que todos nós queremos. Nas coisas simples da vida (como por exemplo namorar, casar, ter filhos, contar um dinheiro, sentir-se mais bonito nem que seja um pouco, trabalhar), nessas coisas mesmo tão corriqueiras é que buscamos uma trilha. Mesmo que sinuosa, nós desejamos encontrá-la para não perdermos o rumo. O rumo da vida. Da vida complicada, mas doce.

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