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Didi Pedreiro

15 de Julho de 2021, por Evaldo Balbino

Foto do escritor Evaldo Balbino com seus pais - Didi e Laura - acervo pessoal

O nome do meu pai é Jesus. Didi é a sua alcunha. Didi Pedreiro, assim o chamam desde longa data. Ele carrega essa identidade por mais de seis décadas. Nos seu 80 anos de vida, já perto agora dos 81, é com orgulho e honra que ele leva a profissão no próprio corpo. Se o título aqui fosse “Jesus”, alguém talvez poderia confundir este meu texto com uma fala sobre o Cristo prometido e encarnado. Mesmo não falando aqui do Deus em forma humana, esta minha fala não deixa de ser religiosa, pois falar da nossa vida miudinha é também falar de Deus, do seu corpo sagrado e sem corpo.

Já me coube dizer do meu pai no poema “Posse”, do meu livro Filhos da pedra, em 2012: “Eu não tenho bicicleta / pra desfilar na alameda. / Eu não tenho carro verde / pra me enfeitar de cor. / Mas eu tenho meu Pai / caminhando na avenida, / chapéu na cabeça, / colher de pedreiro nas mãos.”. Vejo assim, desde minha pequenez, o marido de minha mãe. Desde cedo ele chegando da labuta e trazendo, na boca da noite engolindo as grotas do Ribeirão de Santo Antônio, amendoins em casca para menino pleno de gulodices. E o povoado quase noturno ficava mais vermelho, mais alegre como os amendoins desabrochando das  cascas macias.

Até hoje meu pai me presenteia com amendoins. Agora mais imensos, mais largos que os amendoins em si. O homem de pedra, porque a vida assim o foi esculpindo, ainda é o mesmo e transformado, porque até as pedras mudam, como nos diria Cecília Meireles. Não que ele tenha hoje mais porosidades, porque estas sempre existiram nele. O fato é que antes os poros já estavam nele disfarçados numa rudeza amorosa. Cada um ama do seu modo. O difícil, quase sempre, é aceitarmos os diferentes modos de se amar.

Meu pai sempre foi semeador de sementes, casas e singelezas. Lavrador desde criança, pedreiro desde jovem, sempiterno amante da vida e distribuidor de amor aos quatro cantos. Severo, rígido, apregoador de protocolos para a vida, mas mergulhado no sempre amor. O amor, repito, tem várias faces.

Nos meandros da vida amorosa, meu pai sofreu e gozou a existência. E faz isso até agora. Diz com pulmões plenos que a vida é boa, que ela bem que poderia ser eterna. Eu lhe digo que ela deveras nunca termina, e ele responde que sabe disso, mas que poderia ser também eterno este nosso corpo, o dia nascendo, a noite descendo sobre nós, as ruas caminhando sob nossos pés, as pessoas conversando sem eira nem beira. Entendo meu pai: entre espinhos vamos colhendo flores, e as pétalas compensam as dores.

Por esses dias, depois de afastado da minha cidade natal há mais de um ano por causa da pandemia de Covid-19, aqui estou com meus pais num “abraço” necessário. Depois da primeira dose da vacina, dum isolamento 100% de 15 dias em Belo Horizonte e dum exame rápido para detecção do antígeno via coleta de secreção nasofaríngea, vim para Resende Costa, para o seio dos meus pais. Estes têm sido dias de amainar saudades. Conversas longas, ajudas nos afazeres e certo distanciamento cuidadoso regado a máscara e álcool-gel usados por mim. Eles me considerando exagerado, e eu me derramando nos cuidados por querê-los plenos de vida.

Ontem foi dia de eu arrancar mandioca e colher laranja e mexerica com o meu pai. Sua faina com o enxadão, e eu ajudando a puxar os pés de raízes fortes. As laranjas descendo doces da árvore, oferecendo vida e sumo aos nossos paladares. Cada mexerica mexendo com minha boca, a doce forma de amar. E meu pai regando os chuchus plantados, falando de como se deve aguar as salsinhas, cujos corpos frágeis cedem à pressão de água forte. E suas mãos agudas de tempo quebrando algumas espigas secas de milho e me perguntando com amor se eu queria também arrancar inhames. E me ensinou mais uma vez tantas coisas, como, por exemplo, replantar os galhos de mandioca com suas raízes ainda cheias de vida.

Outro dia, lições também indeléveis. Foi mexendo com suas ferramentas bem-organizadas em dois cômodos atrás da casa. Mexendo e me falando sobre elas. A esmerilhadeira em disco zirconado, o disco de serra de Makita para cortar madeira, o disco de vídea para cortar pedra, o serrote, a peça em disco de caminhão para soquete, a machadinha, o martelo de cabo comprido e com orelhas atentas ao nosso colóquio. Tudo isso beijava suas mãos.

As sementes, os tijolos e as ferramentas são nas mãos de meu pai o que as palavras são nas minhas mãos escritoras. E nós dois seguimos escrevendo a vida, porque há muitos modos de escrita em nossa existência.

Comentários

  • Author

    Querido amigo e poeta Evaldo, é sempre um enorme prazer ler as suas crônicas e participar um pouco da alegria de tê-lo em família! Nesta sua mais recente, em que fala de forma tão poética de seu pai, houve um momento em que eu o vi poeta-homem da terra, plantando e colhendo os bons frutos com as suas doces palavras e, simultaneamente, vi ao sr. Didi poetando as ferramentas cuidadas por mãos ativas no labor de prepará-las para deixá-las ainda mais afiadas no fio da vida. Parabéns! Juntas, as crônicas que homenageiam à D. Laura e agora ao sr. Didi, acabam por formá-lo junto a nós, seus leitores e admiradores! Receba o meu carinho e respeito, Mônica Baêta


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