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Irmã Terezinha

18 de Novembro de 2020, por Evaldo Balbino

Era irmã da tia Ana, casada esta com o Tiantônio. Tinha deficiência mental ou, como dizem alguns especialistas da área, tinha deficiência intelectual. Complicado esse troço de nomenclatura. Eu achava até há pouco tempo que o correto seria dizer “portador de necessidades especiais”. E todo o meu anseio é não negar a ninguém o papel de cidadão. Porque a inclusão de qualquer diferença se faz necessária, e isso em relação ao que as sociedades consideram, nos seus parâmetros, diferente do que seja “padrão”. Padronizar a vida pode ser perigoso, porque isso beira a uma postura, dependendo do caso, autoritária, centrista, excludente.

A primeira cena que trago da irmã Terezinha na memória é lá do Ribeirão de Santo Antônio. Na Boca da Mata, na casa da Tia Ana e do Tiantônio. Tia Ana tava adoentada. Tiantônio mandou chamar minha mãe. Ele tava no lugar de tio dela, pois quem era tia dela mesmo era a Maria, primeira mulher dele. Falecida a tia, minha mãe continuou considerando como tio o marido que contraíra novo matrimônio. Essa consideração era praxe na época.

Na Boca da Mata, Tiantônio tava atarantado no pomar apanhando frutas frescas pra ir vender na vila, Resende Costa. E isso ao invés de cuidar ele mesmo da tia Ana. Mandou chamar minha mãe pra ir com ela a Resende Costa e interná-la na Santa Casa de Misericórdia.

No quarto, tia Ana se arrumando frente ao espelho, penteando o longo cabelo, presilhas acalmando-o na cabeça. De pé rente à porta, minha mãe esperando com paciência. Eu ao lado dela, sempre. E ali era porque eu queria bater perna, ir pra Boca da Mata, menino sem nada que fazer. Dali partia uma estrada que se chamava na época Morro do Quebra-panela e ia dar nas casas do Tibastião e da Tiazinha, esposa do Tizé, esse sim irmão da minha mãe. Meu desejo era saber o porquê do nome Morro do Quebra-panela, uma curiosidade de ver panelas quebradas rolando morro abaixo e fazendo um fuzuê danado. Mas nunca via nada disso.

Pra completar a cena do quarto, sentada na cama de casal, tava Irmã Terezinha (Na igreja dos meus pais, todos se chamam de irmãos, mesmo quando meio enviesados uns com os outros.). Terezinha tava emburrada, falando “Não vou porque não vou!” repetidas vezes. Xingando com sua voz fanhosa, meio sufocada, porque conversava como que dizendo pra dentro o que tinha que dizer pra fora. E revirava os olhos, e fazia uma cara de quem queria silêncio e dizer tudo silenciosamente. Mesmo falando pra dentro com seus lábios finos e quase fechados, era claro o que ela queria. Batia o pé, pois não queria ir pra vila. E não queria porque a tia Ana iria, lá da vila, despachá-la no ônibus pra São João del-Rei, lá onde elas tinham outra irmã que a esperaria e cuidaria dela. No Ribeirão ela tava dando trabalho pra doente tia Ana.

Tive, depois, que ficar com a minha curiosidade menina. Não acompanhei a peripécia em Resende Costa. Mas depois que minha mãe voltou, fiquei sabendo de alguns fatos contados a adultos. E o meu ouvido menino escutando tudo.

Na vila, a tia Ana já internada, o Tiantônio vendendo suas frutas pra outras bandas, e minha mãe com a árdua tarefa de pôr Terezinha no ônibus pra São João del-Rei. Os passageiros ainda esperando do lado de fora o motor em funcionamento pra esquentar e dar a partida. Perto do ônibus, o caminhão de leite do mesmo jeito, o que iria pro Ribeirão. E minha mãe preocupada de o caminhão sair antes do ônibus, pois ela voltaria pra roça.

A emburrada Terezinha, sem aviso prévio e sem nada, entrou num bar, pediu um doce ao caixeiro e saiu dizendo que não iria pagar, mas que Deus lhe pagaria. O homem ficou sem saber o que fazer. Minha mãe, envergonhada, foi ao vendedor e lhe pagou o doce, pedindo desculpa.

Já no ônibus partindo, Terezinha foi bufando pela janela e chamando minha mãe de “Irmã ingrata!”. Todos ali sabiam da situação e entendiam bem o que ocorria. Minha mãe entrou no caminhão e voltou pra junto de nós.

Anos depois, nós já morando em Resende Costa, Terezinha foi lá em casa fazer uma visita. Nem se lembrava mais do “Irmã ingrata!”. Bebeu café, comeu biscoito, falou muito pra dentro. E de repente deu uma das crises que lhe eram costumeiras. Caiu, começou a babar, a virar os olhos. Minha mãe a segurou e pediu que eu buscasse socorro. A Tialorde e o Tibastião, também já residentes na vila, vieram. Terezinha se recuperou, graças a Deus!

Nunca mais a vi. Hoje ela mora em outro plano, com sua fala pra dentro, seus gestos contidos e sua doçura e raiva sempre doce.

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