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José Colodino

16 de Dezembro de 2021, por Evaldo Balbino

Na Boca da Mata, o beijo de amor. O beijo do moço José Colodino na moça Ilídia. A mulher amada, a mocinha Ilídia que com ele fora viver em bodas, do outro lado do córrego, numa grota em que a noite cantava, na mesma grota em que a roda da pedra do moinho fazia círculos sem fim.

Meu bisavô Colodino, pai da vó Laurinda e avô de minha mãe, criou, moço jovem, as filhas ao lado da jovem esposa. Elas foram crescendo: Maria, Chiquita, Laurinda. Foram abotoando como as plantações iam brotando, pois o plantio, a capina e a colheita eram estações certas. No terreiro da casa, o vento ajudando a peneira bailando no ar, o arroz soprado, cascas se indo leves ao vento. O arroz antes disso socado no pilão. De igual modo, na mesma faina, o sopro do feijão na dança da peneira. E o canto do moinho, e as mulheres cantando no mutirão das searas.

As lavouras, a terra lavrada com afinco e ardor. Os bois na canga ajudavam a puxar o arado, o torto arado fazendo sulcos retos na terra farta de frutos. As mulas, os burros, os cavalos de porte mais olímpico para viagens tantas.

O lavrador foi aos poucos e cada vez mais se tornando tropeiro. Não apenas condutor, mas também dono do pequeno bando. Renda melhor, família mais cuidada. Ausências do bisavô Colodino passaram a marcar presença. Saía com a tropa e os tropeiros da Boca da Mata, pousava com o gado nos pastos de fazendeiros que o permitiam, e ia rumando para as bandas do sul de Minas, dando vazão a produtos diversos, principalmente açúcar e polvilho produzidos nas terras do Ribeirão de Santo Antônio. Tudo com destino aos portos do Rio de Janeiro ou São Paulo. Os limites da tropa, no entanto, eram as terras mineiras. Dos Campos das Vertentes para o Sul e o Sudoeste de Minas, lá onde havia outras tropas, maiores e mais bem equipadas, para chegarem com as cargas até o litoral.

Nas idas e vindas, não percebia a pedra do moinho girando na Boca da Mata. As filhas crescendo, a esposa envelhecendo com tantos trabalhos, ele mesmo se mudando no espelho sem se dar por isso.

Depois a enfermidade da mulher. Uma erisipela avassaladora, a lesão sempre ali, silenciosa, porém de forte raiz. Casaram-se as três filhas, e Colodino sentindo a necessidade de mais presença na vida da Ilídia. Nas suas longas ausências, deixava os negócios da família nas mãos da filha mais velha, que, à sua revelia, foi, de modo perdulário, gastando muitos dos bens sem um juízo que trouxesse garantias. Quando o marido retornou para o lado da mulher, deixando as tropas mais por conta de homens de sua confiança, muito estrago nos bens familiares já tinham sido feitos. Isso, do ponto de vista material. Os afetos, por seu turno, já estavam doloridos, pois a bisa Ilídia já caminhava, com a enfermidade bem avançada, para os braços da morte.

Viúvo logo depois, Colodino ficou na sua solidão, porém amando com todas as forças as filhas casadas. Assistia-lhes as vidas, acompanhava os netos que iam chegando, a roda da vida girando.

Com o tempo, a própria velhice, no quadro da média de vida da época, bateu-lhe à porta. Do mesmo modo lhe deram aceno as enfermidades. Não tinha mais ânimos nem forças físicas para ir a cavalo ao Cajuru visitar a Chiquita, o genro e os netos. Eles é que iam vê-lo. No Ribeirão, os demais descendentes morando todos próximos, nas terras do próprio pai.

Tomando o sol da manhã depois de a geada ceder lugar à luz acalentadora, seus ouvidos doentes escutavam a pedra do moinho lá no fundo da horta. Agora, porém, a engrenagem antiga não era mais administrada pelas mãos da sua Ilídia. Eram as filhas Maria e Laurinda, os genros e os netos que ali labutavam. De tropas, ele não mais cuidava. Tivera já que aposentar-se dos trabalhos da vida, pois seu tempo de energia para tanto já se tinha passado.

No fim de tarde dum dia ameno, de uma serenidade que vem nos tempos de outono com folhas secas na certeza de que tudo germinará novamente, o bisavô Colodino, sentado numa pedra perto da porta da cozinha, bebia leite e comia farinha de mandioca, o manjar de que não abria mão. Comia pouco e com vagareza da boca, mas com gosto, muito gosto. A boca se movendo lenta, os olhos fixos lá no ponto escuro entre as árvores onde o moinho jazia parado, a pedra imóvel. De repente um engasgo, a falta de ar, os olhos se fechando úmidos de lágrimas. A Boca da Mata se fechou na boca da noite.

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