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José Simplício

16 de Fevereiro de 2022, por Evaldo Balbino

A memória que se tem do meu bisavô paterno, José Simplício, é pouca. Sem registros escritos, sem fotografias que lhe teçam o perfil para os conhecimentos de hoje, sem a presença das pessoas mais idosas que o conheceram e que também já atravessaram o portal instransponível aos nossos olhos, o que me resta agora é fazer um retrato do outrora com palavras. Meu pai mesmo não o conheceu. E infelizmente nunca conversei com o meu avô Geraldo, seu filho, sobre ele. Mas o vovô também tinha pouco a dizer, não havendo conhecido direito o pai: era muito pequeno ainda quando da morte do patriarca.

Com nome de origem hebraica, esse meu bisavô carregava no seu corpo e na identidade o sentido daquele que acrescenta, que tem algo para trazer ao entorno. Se lembrarmos do bíblico marido de Maria, o carpinteiro José, pensamos no acréscimo para a humanidade que representou o aceite dado por ele ao anjo, na visão onírica de que o menino concebido por Maria vinha do Espírito Santo e era e é o nosso Salvador. Não foi apenas Maria que disse “sim” ao Eterno. O carpinteiro, na sua simplicidade, soube passar por cima de honrarias machistas construídas socialmente e prostrar-se perante o anúncio celestial. Daí a saga de enfrentar as falações das pessoas, os preconceitos, depois a busca por um lugar onde nasceria o Filho de Deus, e ainda mais a fuga: o desterro no Egito a que ele, a esposa e o menino foram obrigados para fugirem da fúria de um rei.

O segundo nome, também próprio, diz ainda do meu bisavô. Simplício. De origem latina, essa alcunha nos fala de uma pessoa simples, sem malícia, moralmente reta. O fato de referir-se também a pessoa tola poderia ser, como advogam alguns, o motivo de tal nome ter caído em desuso. Não creio que seja simplesmente isso. Muitos nomes também são atravessados por modismos. As diferentes épocas apresentam para as pessoas uma lista de nomes à disposição, e isso varia com certeza pelo tempo.

Meu bisavô era simples em todos os aspectos. Destaco aqui a retidão moral, mas também a vida humilde de um pobre vivendo às margens num mundo rural. Um mundo onde uns poucos eram latifundiários (descendentes de antigos “coronéis” e “capitães”) e a maioria era despossuída, contando apenas com as mãos para trabalhar para os outros. Soma-se a isso o fato de que meu antepassado era negro. A uma pessoa de origem pobre, negra, naqueles tempos e naquele espaço, não eram dadas possibilidades de vida melhor. Essa estrutura racista arquitetada em nosso país vem de longa data e perdura até hoje, mesmo nos espaços mais urbanizados onde as pessoas se dizem mais esclarecidas e tolerantes.

Vô Simplício lavrava terras alheias, porque as suas ele não tinha. Meeiro de terras tantas, ele mesmo pouco possuía. Viveu num casebre de pau-a-pique com a esposa Maria Amélia e os filhos, todos pequenos. Não os viu crescerem direito, pois morreu muito cedo, indo lavrar o mundo subterrâneo. Não agora terra tanta, mas os sete palmos que lhe couberam de empréstimo, porque apenas durante o tempo necessário para que seu corpo se desfizesse e para que depois disso fosse colocado outro corpo ali, naquele jazigo simples e sem adornos.

Na lavra da vida, deixou rasgos na existência, plantio que se estende até hoje. Quantos descendentes dele não vieram?! Tenho tantos tios paternos e primos e filhos dos primos! Tenho estas linhas que se escrevem por mãos que trazem as digitais do meu bisavô negro, lavrador, trabalhador. Ele lavrava terras. Do mesmo modo o filho dele, o meu avô Geraldo Melo. Ainda do mesmo jeito, meu pai, de nome Jesus mas Didi Pedreiro para tantos. E ainda, do mesmíssimo modo, também lavro. Lavro palavras nos sulcos destas linhas.

Na faina do seu trabalho incessante, e que só terminou para o seu corpo quando este tombou no pó, José Simplício dizia do mundo. Profetizava um futuro difícil para a humanidade. Com olhos tristes, tinha o hábito de dizer aos convivas que ao longo do tempo o mundo teria muito rastro e pouco pasto. Ele já sentia que o mundo é injusto, que poucos dominam e muitos têm boca, porém regrada. Vivia isso na pele negra e no trabalho pesado. A vida é uma terra arada, bela forma terrosa, mas os sulcos lhe fazem doer o corpo inteiro.

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