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Laura

16 de Junho de 2021, por Evaldo Balbino

Dona Laura ao lado do filho, o escritor e poeta Evaldo Balbino (foto arquivo pessoal)

As mãos eternas de minha mãe. Mãos de mulher da roça e do povo, e depois mulher duma vila tomando ares de cidade pouco a pouco. Sem vaidade nenhuma. Se bem que, nos últimos anos, por clarividência da minha irmã caçula, as mãos de minha mãe têm recebido mais cuidados. Sem exageros, porém. Se antes unheiros as maltratavam, isso lá num passado que já vai longe, hoje elas estão bem menos sofridas, mesmo carregando marcas do tempo, porque sempre trabalharam sem os cuidados que dão à pele um ar de juventude. Meigas as suas mãos, suaves no amar cada filho, o marido, a humanidade, os animais e as plantas.

Humana sim, a minha mãe. Mas mergulhada em bondades que não se medem. Há muitos anos, na igreja que frequenta desde fins da década de 1970, convidaram-na pra ser Irmã da Piedade, um trabalho bonito juntamente aos diáconos, voluntariamente, no atendimento aos que têm fome e sede de comida, roupa e justiça. Recusou de modo franciscano o convite. Pois a recusa não foi por orgulho, e sim pelo medo de exercer de modo oficial “função tão excelsa”. Melhor mesmo seria continuar ajudando a quem pudesse, mas fazendo isso no anonimato da vida.

Desde nova, pronta pra ajudar os outros. Quando o pai e a madrasta foram embora de casa, ela, órfã de mãe desde os 2 anos e contando agora com 8 anos apenas, teve que abandonar a escola que frequentava e assumir sozinha uma casa inteira, o terreiro grande pra varrer, as roupas suas e dos dois irmãos pra lavar, pra coser. Pra socar arroz no pilão, tinha que subir num banco, pois não dava altura. Sem falar no peso da mão-de-pilão. Sabão pra lavar as roupas no riachinho que passava na horta?! Nem isso ela e os irmãos pré-adolescentes tinham. E a comida? Também faltava. Daí ela e os irmãos terem começado a trabalhar em lavouras alheias pra sobreviver. Com o minguado dinheiro recebido, sobrava um pouco pra comprar sabão preto e lavar as roupas no corregozinho.

Na adolescência, submissão ao pai e à madrasta. Uma vigilância. Moça tinha que ficar quieta pra não dar o que falar. Pouco saía de casa, muito trabalhava. E não pra ganhar dinheiro, mas pra cuidar da vida doméstica de todos.

Ainda jovem se casou com meu pai. E filhos, tiveram dez. Perderam dois: o Everaldo com 9 meses de vida e a Elenice com 4 meses.

Até 1989, éramos 7 filhos. E no trajeto desses 7, a luta dos pais pela vida da família em todos os dias. Noites insones, enfermidades, dificuldades financeiras. Todos morávamos no Ribeirão de Santo Antônio, numa época em que até a condução pra vila de Resende Costa era difícil. Em madrugadas sem conta, minha mãe teve que sair a pé do Ribeirão, ir até a fazenda dos Mendes, atravessando mata escura e densa, pra pegar carona no caminhão do fazendeiro. E tudo isso pra cuidar dos filhos doentes com o farmacêutico da cidadezinha ou com algum médico, quando conseguia atendimento público.

Em 1989, veio a décima filha (contando-se os 2 falecidos). E aí, aos 45 anos, novamente mãe de uma bebê, minha mãe iniciou toda uma nova odisseia. Desde meados dos anos de 1980, ela começou a ter problemas de saúde, como diabetes, hipertensão, má circulação sanguínea (chegando a passar anos depois por duas cirurgias complexas). E agora um bebê sendo gerado. No parto, nosso medo, devido às condições de saúde da nossa mãe. Depois, a bebê, linda alegria de nossa casa. 14 dias após o nascimento, um tumor no pescocinho da criança, uma cirurgia, um desgaste de longos dias pré e pós-operatórios.

Nos meus 18 anos, saí de casa pra morar e estudar em Belo Horizonte. De longe, e na medida do possível presente, fui acompanhando a faina dos meus pais, o crescimento e os estudos da minha irmã, as vidas de todos os meus familiares. Cada qual no exercício cotidiano de viver. De lá pra cá, entes queridos foram partindo, entre eles um cunhado ainda jovem e os meus avós paternos, dos quais, quando bem idosos, minha mãe e meu pai muito cuidaram com desvelo e amor. De lá pra cá dona Laura (este é o nome guerreiro de minha mãe) também enfrentou um câncer de pele, acompanhou as alegrias e as dores dos seus familiares, dos vizinhos e conhecidos.

Hoje, em plena pandemia da Covid-19, ela, sempre muito cuidadosa com os protocolos sanitários, sempre diz confiante: “Com Deus atravessando a vida, a gente dá conta de tudo!”.

Assim é minha mãe: Laura, a sempre Laura. Alcunha bonita. Com origem no substantivo latino laurentius (coroa de folhas de louro), seu nome já diz tudo. Minha mãe é mulher vitoriosa, triunfadora.

Comentários

  • Author

    Uma poesia em forma de prosa. Você me deixou apaixonada pela dona Laura, deixando transparecer no texto toda sua emoção e sentimento por ela. Tocou meu coração e meus olhos "suaram". Parabéns!


  • Author

    Querido amigo e poeta Evaldo, como não consegui recuperar a senha, findei por me recadastrar, especialmente para depositar aqui, neste espaço, a minha alegria por poder compartilhar da companhia de D. Laura, desde que a conheci há uns 20 anos. Ela é, de fato, uma guerreira. E daquelas que não alardeia sê-lo. Que faz tudo com simplicidade e serenidade. Tem uma mente vibrante. Contagia-nos com suas histórias e, algumas vezes, deixa-nos boquiabertos. É, simplesmente, uma mulher adorável. Não me admira, portanto, a prole não lhe negar a genética! Parabéns por essa lindíssima homenagem! Merecida e necessária! Devemos prestigiar a quem nos dá vida, legando nosso agradecimento sincero, como é o seu sempre. Com carinho e respeito, Mônica Baêta


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