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Maria Amélia

19 de Janeiro de 2022, por Evaldo Balbino

Era muito boa, diziam a mim os mais idosos que já realizaram a travessia pelos caminhos espirituais. E dizem o mesmo alguns outros que, a despeito da idade avançada, persistem firmes nos nossos caminhos da matéria. “Era muito boa”, me diziam e me dizem. Das palavras proferidas e do meu amor, resulta que em tudo eu só posso acreditar. Crer e não teologar mais, como tanto já se fez e se faz em relação a Deus.

Pelas palavras ditas e embebidas em meus ouvidos e pousadas no meu coração, posso dizer da minha bisavó Maria Amélia muita coisa que meus afetos plantam e fazem brotar duma terra roxa de paixão, pura vida. Se há morte, há também vida. Dor e alegria de mãos dadas, nas nossas travessias.

Mãe do vovô Geraldo Melo, avó do meu pai Didi. Tinha cinco filhos, duas mulheres e três homens. Meu avô era um dos rebentos que, juntamente com ela, tiveram que lutar desde cedo na vida. Manhãs, tardes e noites adentro, suas lidas prolongavam-se na vida rural, com pequeno descanso aos domingos (dias de Deus) e às madrugadas nas quais os cansaços descansavam em colchões de palha estirados sobre jiraus. Na parede de pau-a-pique do casebre, buracos faziam ver o de fora, o vento da noite, a geada da madrugada, os fantasmas dos mortos lamentando as dores dos vivos.

Nome tão belo: Maria Amélia! Identidade composta pela suavidade morando num corpo de vida áspera. Os cascos da vida têm suas delicadezas. Maria, nome da mãe de Jesus. Simplesmente assim, Maria. Palavra desenrolando-se pela existência tal qual a água marinha em calmaria. Amélia, mulher do lar, longe de se fazer “bela e recatada”. Mulher que enfrentava a vida doméstica e a vida fora de casa (ambas difíceis nas mãos afeitas ao serviço rude), e não mulher de altos políticos ou homens poderosos que arrotam nobreza nunca existida. A verdadeira nobreza reside nas pessoas simples da vida. Na cozinha e na lavoura, os braços rudes da bisavó Maria Amélia iam plantando meiguices na vida, alimentando a boca da vida, abençoando a prole que desde cedo ajudava mulher tão audaz.

Humilde e trabalhadora, de uma simplicidade franciscana, não sabia ler nem escrever palavras, mas lia o mundo, este livro imenso diante de nós. Areava a terra, arava vasilha, verdejava o chão da casa, varria os campos com folhas de arroz e galhos longos de milho e ramas de feijão. Depois os grãos maduros, o arroz e o feijão batidos e soprados, as palhas ressequidas jogadas para um canto do terreiro. E o milho, este fruto nosso de cada dia, matando fome e gerando vida, vindo para casa nas espigas quebradas dos talos, a palha seca servindo para pitos e para o fogo no fogão da existência. Os grãos de milho triturados no moinho da vida. O fubá gerando o angu, a broa; e a mesa simples, mas suficiente para alimentar os corpos.

Maria Amélia praticamente criou sozinha os filhos. O marido José Simplício partiu-se logo da luz do mundo. E nessa mesma luz ficou a mulher com os meninos. Todos, ao longo da vida inteira, sem Escola. Mas na escola, a grande escola da vida.

No casebre de pau-a-pique em que moravam, o telhado era simples e sem forro, as janelas eram de madeira velha, o chão de terra batida. Do lado de fora da janela da cozinha, um jirau para escorrer a água das vasilhas usadas. O jirau era lindo, pousado no de fora da casa, como um guarda que não tosqueneja. Ele era uma das manifestações de Deus guarnecendo a casa, a mulher e os filhos. Um ar de limpeza, de água escorrendo no chão cheiroso e seco da Terra.

Viviam no Ribeirão de Cima, lá perto do Morro das Antas, na parte mais alta do Ribeirão de Santo Antônio. Residiam lá onde as pessoas conviviam com os mortos enterrados no cemitério. O povoado todo ainda era bastante povoado.

Não sabia a minha bisavó Maria Amélia que muito tempo depois estaria eu, seu bisneto, falando sobre ela. Duma mulher forte conhecida por palavras contadas e recontadas, agora este bisneto anda entre palavras e remenda os retalhos da vida. Nesta lavoura verbal, nesta faina doméstica com os vocábulos, eles e eu tão íntimos, vou plantando vidas que não morrem nunca. Os retratos fixados pela escrita incessante permanecem guardados por molduras de aço. As palavras são aço nos guardando de traça e tempo. Assim é o retrato da minha bisavó: Maria Amélia eterna.

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