Voltar a todos os posts

Maria da Ritinha

17 de Marco de 2020, por Evaldo Balbino

A sua mãe Ritinha era viúva, e moravam ambas num casebre de São Vicente atrás da casa paroquial e da capela. Isso no Ribeirão de Santo Antônio, no topo do povoado. Ajudadas pela Conferência de São Vicente de Paulo, a mãe trabalhava a torto e a direito e a filha, Maria, fazia bonecas de pano num trabalho sem fim.

A mãe buscava sozinha água com latas na cabeça lá na cachoeira do Tibúrcio, fazia a comida, limpava a casa, cosia as roupas, remendava o que fosse necessário numa vida cheia de remendos. Passavam fome? Por mercê de Deus não. E também pela boa vontade dos conferencistas, confrades e consocias que esmolavam aqui e acolá e lhes conseguiam víveres para o dia-a-dia. Nem andavam nuas, que roupas de pano simples elas ganhavam, também da Conferência.

O tempo foi passando, e a mãe faleceu deixando a filha solteira, sozinha e já nos seus quarenta e tantos anos. Durante toda a vida, a dona Ritinha não lhe ensinara a fazer nada, nem serviço de mulher nem de homem, como se costumava dizer por aqueles tempos idos e, infelizmente, ainda muito se considera e se diz hoje em dia.

Celibatária e só, Maria não perdeu o amparo divino e o da Conferência de São Vicente. Mesmo assim, porém, passou apertos. Sua comida ou ficava crua e sem sal ou demasiadamente salgada e passada do ponto. A simples casinha demorou muito para ganhar ares de limpeza e um pouco de organização. Como sempre fizera desde nova, continuou, por quase toda a sua vida, fazendo bonecas de dar gosto em meninas que não tinham condições de comprar as cobiçadas bonecas industrializadas, as vistas nas mãos de filhas de fazendeiros.

Suas bonecas eram branquíssimas, feitas de pano que era restolho de tecido da Conferência. De rostos ovalados, levavam, ao invés de cabelos, panos pretos que lhes envolviam a cabeça com graciosidade como se fossem lenços. E de linha preta eram feitos seus olhos, nariz e boca. Os corpinhos delgados eram cobertos de vestidos coloridos. E braços e pernas se estendiam para a vida, porém com mãos e pés sem dedos. Na boniteza de tudo isso residia o que era mais bonito ainda: Maria dava as bonecas para todos, não cobrando nada em troca. Diziam que ela produzia os brinquedos por produzir, que não sabia trabalhar em outra coisa, que não tinha aprendido nada, que tinha preguiça... e continuavam em outras mais maledicências. Mas ninguém via o sorriso no rosto das crianças que recebiam as bonecas de pano. Ninguém via as tantas felicidades que essa criatura de Deus, a que “não sabia fazer serviço nem de mulher nem de homem”, levava a meninas que não podiam comprar brinquedos.

Maria da Ritinha, assim sempre chamada, foi envelhecendo. Era baixa e gorda. Andava bem-vestida com seus vestidos de cinto abotoado ou amarrado na frente da cintura, apertando sua barriga sobressalente e alegre.

Certa vez ela disse à Conferência, num tom choroso, que não tinha traje para as missas e os velórios, muito menos para qualquer festejo da vida. Bateu na sua casa, pois, um dos confrades:

– Tem como ver seu baú, dona Maria?

– Pra quê, se ando quase nua!? Basta minha palavra, ó sô!

Depois da teimosia, a conferência foi feita. E da caixa de roupas saíram alguns vestidos nunca usados. Uns floridos, outros sérios; uns rendados, outros lisos como um veludo que nos dá calma.

– A senhora não tá carecendo não, dona Maria.

– Ah, então vá! Se não qué dá, não dá, ora! – disse brava, mas sem perder o amor de vista. E nunca perdeu mesmo.

Contam que, quando iam alguns confrades trabalhar na capela ou na casa paroquial ou até mesmo na casa de São Vicente, com reformas e outros quefazeres, lá vinha a Maria com alegria, bule e canecas esmaltadas para servir café a todos. E se ela percebia algum resto de sujidade nas canecas, dava um jeito solícita com cuspe e o dedo indicador, limpando tudo para o bem de todos.

Muitos anos depois ela foi morar na vila, no que na época se chamava de “asilo”. Palavra forte, desoladora, porém usada. E lá terminou seus dias na face desta Terra.

No dia em que faleceu, foi levada de volta para o seu Ribeirão enrolada num lençol, nua como viera ao mundo. Cadê os vestidos de antes?! Nenhum. Dum pano florido, tia Fiinha costurou-lhe um vestido derradeiro, do jeito de que ela tanto gostava: com um cinto enlaçando-se na sua cintura agora magra e silenciosa.

Comentários

  • Author

    Minha vida de responsabilidades teve marco no Ribeirão, lecionei na Escola Paula Assis por pouco tempo e em seguida passei concurso público na área da saúde e fui lotada onde? RIBEIRÃO...rs...adoro esse lugar.....memórias boas....dona Hercília levando marmita no posto para mim a troco de "nada" .....Tudinha, Coleta, Zé do Chico ...ah...dona Zulmira....dona Geralda..."Sá Jezuza"....enfimmm....até deu vontade de escrever.....


Deixe um comentário

Faça o login e deixe seu comentário