No panô sobre a pia, com casinhas embainhadas que serviam de garfeiro, minha mãe guardava o talher lá de casa: colheres e garfos para tantas bocas. Isso há quase quarenta anos, quando meus olhos infantes liam, bordadas no centro do panô e pouco acima do talher, as letras inconfundíveis das mãos rendeiras de minha genitora:“Deus guarde a minha casa / Salve Deus o meu lar / A todos que sair / A todos que entrar.”.
Versos simples assim, numa escrita sem enfeite nenhum e sem formalismos que tornam os rituais religiosos vazios. Na humildade, a fé de minha mãe era verdadeira. Gostava de folhinhas e quadros com frases bíblicas. Quando ganhou um folheto com uma frase do Salmos, imediatamente pediu que o emoldurassem e o colocou na parede da sala. Até hoje esse quadro está lá, e o namoro constantemente. Namorá-lo é um dos modos de amar para sempre a minha mãe.
No dia a dia, seus lábios cantavam hinos de louvores a Deus, entre os afazeres e mesmo durante eles. Diversas vezes dizia “Tem misericórdia, meu Deus!”, ao que eu, preocupado, indagava: “Mãe, tá tudo bem?”. “Só tô conversando com Deus, meu filho.”. E assim prosseguia: trabalhando sempre, para si e principalmente para todos, trabalhando e conversando com o Ser Supremo.
Levantava-se muito cedo, meio escuro ainda o dia, e passava café para tanta gente: o marido, filhos e sobrinhos que conosco viviam. Somente nos últimos anos, já com a casa mais vazia (morando nela somente meus pais e minha irmã caçula), é que meu pai assumiu a tarefa do café, antes de ir para o serviço de pedreiro. Mesmo aposentados, meus amados pais nunca quiseram deixar de trabalhar, como até hoje meu pai trabalha.
Minha mãe madrugava e compunha no seu dia um enredo rico de tarefas, de tapetes no tear, de comida sempre saborosa no fogão. E em tudo e para além de tudo, o sempre amor. Sua existência amorosa para com filhos e marido e todos os mais que lhe buscavam atenção e afeto. Até mesmo os que a ofenderam ao longo da vida receberam, em troca, a lição cristã da outra face ofertada, das mãos estendidas para quem fosse, independentemente do que fizessem.
Aos distantes, quando Deus e seu esforço lhe permitiram ter um celular, sempre fazia chamadas na demanda por notícias. Assim comigo, morando a quase duzentos quilômetros dela, e assim também com os netos que de nossa pequena cidade foram saindo.
Os celulares que foi adquirindo, e sempre comprando outro somente quando o anterior estragava, eram todos simples, também sem nenhum enfeite e nenhum aparato de muita tecnologia. “Só quero telefone pra conversar o que for preciso.” – ela dizia isso como quem fala “Preciso do ar pra respiração.”. De fato, nunca nada de aplicativos para chamadas de vídeo, nunca o uso de internet.
Sempre era a sua voz me chegando pelo telefone: “Tudo bem, meu filho?”. Ao que eu respondia que sim (mesmo tendo problemas meus que evitava levar-lhe), seguindo-se de minha parte um pedido de bênção, que graça de mãe não se deve negar. Muitas vezes eu falava com ela, a distância, umas duas ou três vezes por dia. Até mesmo mais do que isso. A cada conversação, o meu pedido de bênção era renovado.
Nas minhas visitas a ela, sempre a sua preocupação com a hora em que eu chegaria. Quando eu retornava para minha casa, somente sossegava o seu coração depois de receber minha chamada com a notícia de que eu já estava sob meu teto e de que sob a graça de Deus já tinha feito uma viagem tranquila. Quando eu não ligava de imediato após meu retorno, ela mesma me chamava, dizendo, nas entrelinhas, que a distância não nos separava.
Há oito anos saiu a versão número 5 do Hinário de nossa igreja. De imediato ela se apaixonou pelo novo hino 44, “Sol da justiça”. Logo aprendeu a música e a letra; e desde então exalava a canção lá em casa, enfeitando o ar, a rua, o mundo. Sua voz era afinada; o seu canto, vida. E no refrão seu canto nos amava por meio do amor sagrado: “Sol da justiça, Sol da justiça, / Temos agora Teu resplendor; / Graça trouxeste do Pai Eterno, / Misericórdia ao pecador.”.
Uma coisa entre tantas me fez admirar cada vez mais a minha mãe. Mesmo vindo de uma formação moralista, o que ela sempre foi aprendendo com a vida e nos ensinando é que todos somos filhos de Deus. Sem prender-se a uma ideia absurda de pecado, o que ela dizia e praticava era amor, simplesmente amor. E o amor divino é pura misericórdia.
Nos seus últimos momentos de vida terrena, suas últimas palavras sobre a cama de um hospital não foram um olhar apenas para si, mas para todos nós. Mesmo na dor, no corpo sofrido, o que seus olhos e boca disseram foi amor eterno: “Deus, tem misericórdia de nós!”. Depois disso, um apaziguamento sem fim, um rosto suave nos beijando a vida.
Mônica Baêta Neves Pereira Diniz - 21/07/2022
Em diálogo inegável com a poeta de sua predileção, Evaldo Balbino nos brinda com mais uma crônica em que canta junto com sua mãe Laura e nos encanta. Com simplicidades e afazeres sempre constantes em uma vida digna e honrada, que nos faz ver que as alegrias e grandezas aí residem, sem necessidade de luxos e de pompas. É uma mãe presente, consciente de seu papel social e familiar, que acaricia o coração, não apenas dos filhos, mas até da vizinhança e dos amigos no entorno com sua meiga voz que agora nos cala fundo na alma! Obrigada, Evaldo, por nos encantar! Receba o meu carinho eterno também!