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O escuro cintilante

18 de Fevereiro de 2021, por Evaldo Balbino

De noite eu não via quase nada, porque não tinha luz elétrica no povoado.

Lá em casa, parede de tijolo à mostra, chão também de tijolo no qual eu tinha vontade de nadar quando minhas irmãs o lavavam. Eram latas tantas de água que limpavam tudo, e o tijolo do chão bebendo a água que lhe matava a sede. E minha sede de mergulhar ali era muita.

De noite, nessa casa de família numerosa, a luz de lamparina era a nossa companheira. Sua fumaça chegava à cumeeira, sua flama projetava sombras nas paredes. Sombras humanas, pois os demais bichos fugiam lá de casa, tamanha era a higiene com tudo.

Lembro as sombras dos meus irmãos estudando, fazendo de noite o para-casa, porque de tarde ou de manhã, no contraturno da escola, o que faziam eram os afazeres da casa e das roças que o pai cultivava em terra alheia nas proximidades.

Era de noite, nessa casa, que eu via a sombra de minha mãe ao tear. Colchas sendo tecidas para ajudar no cuidado financeiro de tudo. Marido e mulher em labutas sem fim. Lembro a noite em que dois garrotes da redondeza travaram uma baita briga. E seus urros e embates corporais eram escutados a distância. Minha mãe assustou-se; mas, clamando pela misericórdia de Deus, não largou o tear nas altas horas semiescuras.

Digo que eu não via quase nada, porque era de noite. Mas esse não ver era com os olhos materiais na limpidez do dia. Muita coisa eu via sim. Silhuetas dizem mais do que os corpos e os objetos vistos à plena luz. Indecisas, elas acionam o que há em nós da verdadeira visão. É mais real o que imaginamos do que aquilo que vemos.

E era dentro da pequena igreja que a luz era verdadeira. Luz atravessada pelos escuros de dogmas rígidos na verdade, mas em meio à comunhão de reses que, mesmo machucando umas às outras de vez em quando com os chifres, não deixavam de ser grei buscando seu pastor. E o pastor, dizia o cooperador Totonho lá em cima do púlpito, o verdadeiro pastor é o Cristo que se fez Jesus e que morreu em carne por nós.

Na igreja tinha lampião a gás, luxo tanto para casas pobres. Não que a igrejinha fosse rica, mas o ajuntamento do gado (cada rês com seu bolso, vaquinha dali e daqui no que se chamava e se chama de coleta espontânea) permitia o fausto do lampião. E que a mão esquerda não visse o que fazia a direita: assim ninguém sabia o que cada qual dava em contribuição para os gastos básicos da igreja. Os atendentes dos rituais, os faxineiros, os porteiros etc. – todos trabalhavam ali voluntariamente. Porém tinha todo o resto: os lampiões, o gás dos lampiões, a limpeza, o asseio dos dois banheiros ao fundo da igreja (outro “luxo” este, porque praticamente todos usavam em casa era privada seca mesmo!).

O chão do pequeno e simples templo era amarelo. De amarelão, diziam. E como brilhava à luz dos lampiões! E meus pais e outros progenitores levavam colchas para que nós (as crianças exaustas da labuta de ser criança) pudéssemos repousar durante o culto de uma hora e meia. Eu gostava de me deitar ali, com vontade mesmo até de abrir mãos das cobertas forrando aquele brilho gostoso de se ver. A luz de Deus morava no amarelo do chão. A cera e a enceradeira tinham o poder de fazer os olhos de Deus brilharem sob os nossos pés. Mas nada de eu me deitar direto no piso frio! Meus pais não deixavam. Poderia vir um resfriado.

Entre outras crianças, meus olhos semicerrados fingiam um sono que quase nunca existia. Primeiro porque o brilho dos olhos de Deus era espantoso. Não tinha como não olhar para ele. Segundo porque o inferno, vindo com palavras de ferro lá de cima do altar, era terrível e também espantoso. E meu corpo pequeno, bem na boca do sono, temia o ranger de dentes, os lagos de enxofre, o fogo descomunal crepitando por toda a eternidade. Daí meus olhos meio que abertos. A visão do brilho de Deus no chão amansava a dança dos demônios e limpava a mente de algum pecado cometido durante o dia, por ato ou pensamento ou palavra.

E Totonho até que falava manso. Mesmo assim, na sua branda e sussurrada voz, o inferno, mesmo vindo macio e aveludado, era espinho na carne, farpa cravada na pele, cravo incomodando o pé contido num sapato apertado.

Os cultos eram assim, cheios de luz nos escuros da vida. Deus tem doçuras como nós temos, mas somos também brutos em nosso severo amor.

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