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Ode a uma pequena cidade

16 de Maio de 2009, por Evaldo Balbino

Sim. Amamos as cidades. Contanto que elas já tenham nos habitado um dia ou durante certa época. Amo o que vejo uma vez, em presença ou numa figura de livro ou num cartão postal. Mas amo muito mais, evidentemente, aquilo ou aqueles que me ocuparam, que se entranharam no meu ser de tal modo, imprimindo-lhe as cicatrizes inapagáveis da vida. Tudo bem que algo apenas visto, mesmo que à distância, pode nos marcar muito. Mas o que se coloca em presença em nossas vidas acaba por delas fazer parte, inegavelmente. Quanto mais em se tratando dos lugares que habitamos, ou melhor, dos lugares que, por carregarem aos nossos olhos tantos significados, acabaram por nos habitar. Se não concordam comigo, leiam, por favor, o maravilhoso A poética do espaço de Gaston Bachelard.

Mas de que amor se pode dizer, se há tantos modos de amar? Irremediavelmente não posso fugir ao senso comum, tão criticado injustamente muitas vezes, segundo o qual amor e ódio andam juntos. Assim, dizer que amo é o mesmo que afirmar ‘eu odeio’. Para além de binarismos, o que me move nos significados que construo é um trânsito entre o aqui e o lá, entre o ser e o não ser, entre o medo e a coragem, entre o amor e o ódio. Sempre assim, dividido, é que nunca pude compartimentar tão geometricamente as coisas da vida. Por exemplo: desde há muito tempo sou tentado a confundir as palavras ‘ode’ e ‘ódio’.

O primeiro culpado por essa confusão, na minha vida de leitor, foi o Andrade, o nosso Mário de Andrade. Ao ler sua ‘Ode ao burguês’, pude ver, para meu espanto, que uma composição lírica, sempre de tom alegre e entusiástico, pode ficar apenas no referido entusiasmo, banindo de si qualquer alegria. O ódio de Mário é contra o burguês, um ódio entusiasmado pelo ‘burguês-níquel’. Se, na base grega, estar entusiasmado é ter deus dentro de si, então Mário encheu-se de deus não para louvar com alegria, mas para destruir freneticamente a burguesia que ele desejava aviltar.

A segunda culpada das ambiguidades nas minhas leituras dessas duas palavras, ode e ódio, é a proximidade fônica e mórfica entre elas. Se de início me preocupava esse devaneio verbal, posteriormente meu estado de preocupação serenou-se: fui percebendo, aos poucos, que tudo era o modo que eu tinha de ler as coisas no meu entorno e, principalmente, os lugares por que passei, que olhei, de que me enamorei enternecidamente. E sempre o enternecimento misturou-se, não a uma ojeriza, mas a um tipo amainado de ódio, uma suposta indiferença, um silenciamento, um modo oblíquo de relacionar-me com cada lugar que morava em mim.

Ode e ódio se confundem, pois, em toda a minha vida. Não uma ode extrema nem um ódio puro, mas um misto de tudo na avalanche dos sentimentos confusos que sempre também me habitaram e me habitam.

Assim a casa em que nasci, as camas sob as quais me escondia quando criança, os debaixos das colchas de retalho que me protegiam de fantasmas, os entre-lugares das árvores, nos quais eu podia cometer meus atos tão normais, mas tão clandestinos aos olhos do mundo. Assim a pequena cidade, para a qual me mudei ainda criança – vila, diziam os mais velhos – e que me tornou esta criança eterna, sempre brincando em suas ruas, na Rua do Rosário, no pasto do Chicão, na Rua Sete, na Lagoa do Lalado, entre os eucaliptos que levavam à casa da Dinha. Sem falar nas lajes, nas conhecidas lajes, famosas, mas também difamadas por línguas que não aceitavam terem aquelas pedras se tornado motéis ao ar livre, ou melhor, ‘pedréis’ para namoros afoitos ou não. E à margem desses namoros, eu, que só comentários sobre eles ouvia, ficava ali nas lajes treinando outros tipos de erotismo: enamorando-me dos ocasos extremosos, daqueles jorros seculares do sol atrás das planícies distantes e tão próximas de mim, com seus apelos e trejeitos femininos de matar.

Em muitos momentos, os de existência mais pública nos palcos de terra, calçados ou cimentados da cidade, meus pés caminhavam medrosamente. Com passadas largas, nervosas, eles iam entre casas com janelas que me olhavam. Janelas de madeira, coloridas, umas meio coloniais, outras mais toscas, com simplicidade disfarçada, umas com vidro, outras não – mas todas eram escancaradas no seu modo olheiro de existir. Essas janelas foram o modo de eu me perceber na vista de todos. E como me preocupavam aqueles olhares, aquela modorra, aquele não existir outro algo para se fazer! Molestava-me a sensação de ser eu um motivo, o único nos momentos em que por ali passava, para ocupar o tempo desse ser vivo que, parece, nasceu para sempre olhar, olhar e olhar.

Já que estou falando desses amores, desses oblíquos amores e dessas oblíquas miradas, lembro aqui o conhecido verso ‘Eta vida besta, meu Deus’ do nosso Carlos Drummond de Andrade. Verso em que o poeta satiriza a vida vagarosa e olheira da Itabira do passado. Mas basta lermos outros poemas e contos e crônicas e livros do mesmo autor, como o memorioso Menino antigo, para verificarmos o quanto restou dessa mesma cidade no mineiro que, mesmo indo para o Rio, não deixou de lado sua mineiridade. E hoje, se não escrevo estas linhas situado realmente entre bananeiras, laranjeiras, homens, cachorros, burros e janelas – todos esses seres que vão e olham devagar –, sentimentalmente estou ali, nas ruas de Resende Costa. Estou ali fazendo poemas e brincando de amar e de odiar. Estou ali sempre dizendo, no meu canto sem fim, ‘pomar amor cantar’.

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