As piteiras são grandes, leques abertos para o céu. Como é possível essa atenção para as nuvens, lá onde o vento as carrega, lá onde elas são arejadas e sopradas? As nuvens são mulheres espaventadas em dia de verão. Faz calor entre os terrões jogados na pirambeira do pasto do Chicão, entulhos do desaterramento em uma construção mais acima do pasto, e as nuvens lá, folgadas, leves e esvoaçantes. Ele gosta delas, atribuindo-lhes formas, modelando-as como se deseja modelar a vida. Mas o problema são os leques abertos, as piteiras que se abrem para o céu, jogando suas folhas largas para o espaço. Lançam-se, não como a espada de São Jorge contra o dragão, mas como lanças verdes e espinhentas contra não se sabe o quê.
Quando ele corta algumas dessas folhas, faz isso sem maldade nenhuma. Todavia não deixa de pensar, com ares de maldade bem ingênua, que o que faz é uma pequena vingança. As piteiras olham para as nuvens e o desdenham, e ele faz dessas piteiras seu joguete, um jogo de camicase. Transformando cada folha de borda espinhenta em prancha, ele pode brincar com a morte. E aí se sente importante, um pequeno vilão, talvez até mais formidável do que os vilões que desfilam nas telenovelas.
Como não tem mar em Minas, as ondas de terra, mato e lixo avançam barranco abaixo até morrerem como águas tranquilas lá no fundo do pasto, entre ossadas de animais domésticos, plantinhas sem-vergonha do campo e cupinzeiros rijos.
Surfar hoje promete ser uma atividade feliz. Ele é o mais rápido. Desce pela ribanceira, entre poeira e adrenalina, como um esquiador profissional. Sentado na folha convexa e oblonga, é o marujo dos mares de Minas. O aguilhão na ponta da folha segue uma direção misteriosa. Não se pode saber o que vem pela frente. Os perigos são fartos, no entanto sua coragem de marujo indomável é descomunal. Os cupinzeiros são recifes de coral erguendo-se das águas. Com mãos fortes e ágeis, ele guina a ponta da piteira ora para a direita ora para a esquerda. Assim, desvia a embarcação de todos os obstáculos. As pequenas ossadas são perigosos monstros marinhos, dos quais o garoto se desvencilha astuciosamente.
E se um polvo enorme o abraçar com tentáculos mortais, como viu certa vez na capa de Vinte mil léguas submarinas? Se aqueles marinheiros criam no monstro, por que ele não pode também acreditar? Se for atacado, não terá problemas! Os espinhos da piteira serão seu livramento. O grande molusco perderá seu tempo, pois, no contato com os espinhos, haverá de afastar-se amedrontado e com dor.
O trajeto pelo qual desce o menino não é tão longo. Porém na infância tudo é imenso. Um mata-burro que se atravessa é uma ponte desmedida, ligando até mesmo mundos distantes e distintos, galáxias diferentes. Enquanto singra os mares de um Júlio Verne, eis que a folha de piteira se choca com uma pedra, e o garoto é arremessado nas águas, ou melhor, na terra.
Vai rolando entre poeira e medo, folhas secas, papéis descartados, terra dura e pedras intratáveis. Quando definitivamente para, seu pé direito bate-se contra uma pedra. E a dor é maior do que o medo. É terrível, contudo ainda é a garantia de que está vivo. Chora o menino, e só consegue voltar para casa amparado nos braços dos amigos.
A mãe pensa em gritar, puxar-lhe a orelha. Mas a compaixão aplaina o furor. Os cuidados requerem a primazia. Se não há remédio para as capetices de uma criança saudável, há que se buscar a cura para o pé torcido, inchado e vermelho.
A vizinha Trindade chega bisbilhoteiramente no quarto em que depositaram o acidentado. Ela vem com bafo de pito de palha, afora dois outros pitos atrás de suas grandes orelhas, um em cada uma. Chega calma, como se na vida tudo acontecesse em câmara lenta. Olha com seus olhos grandes para o menino e receita para a mãe: emplastro de minhoca frita com alho roxo.
À revelia dos enjoos e das caretas do filho, a mãe segue o conselho, amarrando-lhe no tornozelo o pano cheio da gosma fedorenta. Nem sobra no pensamento do menino espaço para ter pena das minhocas, tamanha a náusea que o aflige.
Choramingando, o audaz navegante vai adormecendo. Vai caindo no sono à medida que a dor some. E sonha. Imagina coisas que não sabe e que ainda lerá um dia: Brás Cubas quis ficar afamado com a invenção de um emplastro miraculoso e nunca produzido. Já a mãe do menino e Dona Trindade fazem bizarros emplastros, vivem sem nunca pensar na fama e nem por isso deixam de ser famosas. Famosas pelas mãos que agora as escrevem.
Piteiras e emplastros
10 de Abril de 2011, por Evaldo Balbino