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Pra dizer que falei das flores

25 de Janeiro de 2024, por Evaldo Balbino

Todo mundo já ouviu falar em ferrinho de dentista, aquele instrumentozinho que vai em cada canto da boca e que faz doer até a nossa alma. Esta alma medrosa por demais! Há pessoas que também são ferrinhos de dentista, que trazem consigo algum espiritozinho errante, sem eira nem beira, ao qual nada mais resta senão cutucar a gente. Aliás, há pessoas que são a própria encarnação verdadeira, cuspida e escarrada, desse espírito.

Pois bem. Faz algum tempo, de alguns meses para cá, que venho “enfrentando” esse espírito encarnado. É muito fel vindo de uma pessoa só. Infelizmente existem essas coisas. E o que nos resta é ter piedade, pois, no caso em questão (creio nisto piamente como vejo a luz do dia), trata-se de alguém malicioso que, parece, sente prazer em maltratar as pessoas. Seu rosto é carranca irremediável. Temos aí alguém que existe para ferir o outro, não olhando hora nem “desora”. Na verdade, pra uma pessoa assim não existe tempo inadequado pra falar ou dizer as coisas. Qualquer momento é a pura deflagração de farpas, de olhos enviesados, de cara sombria e gestos duros. Pura falta de amor! Sem remédio.

Outro dia mesmo (variações do mesmo tema), esse alguém, sob anonimato (mas eu sei da máscara e do rosto que ela cobre), comentou sobre uma crônica minha: “Quanto culto ao existencialismo enquanto milhares são impunemente assassinados na Palestina. Como escreveu Brecht: ‘que tempos são esses em que falar de flores é quase um crime pois implica calar-se diante de tantos horrores’”.

Eu não responderia a esse comentário. Primeiramente porque sou fã da liberdade de expressão. Segundamente, porque acredito que cada qual pensa do modo como quer pensar. Terceiramente, porque não acho bonito isto de dizer e contradizer e revidar etc. e tal... (isto quando se trata de um debate que não é debate, de uma discussão nascida da malícia e sem fundamento).

No entanto, bora eu dizer o que se faz necessário. Causam-me alarme falas soltas, sem contexto, com uso abusivo de conceitos complexos e com citações malfeitas, sem cuidado mesmo com as fontes. Tudo em nome de uma oposição pela mera oposição. Vazia, como se vê.

Nem vou discutir aqui o equívoco do uso da expressão “existencialismo”. Se Kierkegaard e Sartre lessem o comentário transcrito, ficariam espantados agora, com seus ossos em pó revirando-se no além, pois perceberiam de imediato que quem escreveu tal afirmação desconhece que o existencialismo é justamente uma reação humanista contra toda e qualquer forma de alienação.

E o que dizer da alma combativa e dos restos mortais, também em pó, de Bertolt Brecht?! Estão se contorcendo do mesmo modo.

A citação feita pelo ferrinho de dentista é extraída do belíssimo poema de Brecht, assinado pelo autor em 1937-1938, “An die Nachgeborenen”. A extração, contudo, não é muito feliz. Eita-ferrinho-de-dentista mais desengonçado!!! Não sei de que tradução vem. Apenas pude ver que tal tradução passeia pela internet ao deus dará, também sem eira nem beira como o ferrinho de dentista de que venho falando. Um ferrinho catando a esmo o que fala.

O título “An die Nachgeborenen” pode ser traduzido em “Para aqueles nascidos depois”. Ou melhor ainda, na belíssima tradução de Paulo César de Souza saída no Brasil em 1986: “Aos que vão nascer”. Ou ainda, para mais um exemplo de beleza e cuidado, temos esta versão de André Vallias, dada a lume no Brasil em 2019: “Aos pósteros”.

Bertolt escreveu este texto às vésperas da Segunda Guerra Mundial. O autor sentiu na própria pele as forças nazistas e a repressão de Hitler sobre o seu país e o mundo. Tornou-se um sujeito diaspórico, fazendo teatro e poesia revolucionários na forma e no conteúdo. Os tempos de que fala o poeta são os carregados antecedentes da II Grande Guerra, mas os versos podem, é claro, falar de qualquer época de guerra, de genocídio etc.

Eu só gostaria, porém, de entender de onde o comentarista ferrinho de dentista extraiu as tais flores que ele menciona. O verso alemão de Brecht é “Ein Gespräch über Bäumefast ein Verbrechen ist”, assim posto em português: “Uma conversa sobre árvores é quase um crime”. Tudo bem que o comentarista da minha crônica e o tradutor tão incógnito quanto ele tenham querido usar metonimicamente “flores” por “árvores” e também buscar uma rima com “horrores”, palavra registrada no comentário em tela. Além disso, diria o comentarista, continuamos no mundo da flora para dizer da alienação: flores e árvores, puro afastamento da realidade. Vale dizer aqui que, no original alemão, Brecht escreveu “Untaten”, que são “delitos”, “crimes”. Posso concordar com o ilustre comentarista sem rosto e dizer também “horrores”. Mas daí dizer flores por questão de rima, já prefiro não concordar.

Tenho problema com flores?! Muito pelo contrário. E sei que falar delas é também dizer da nossa existência. Existimos, estamos no mundo, atuamos nele, pensamos sobre ele e sobre nossas ações no seu seio plácido ou conturbado, triste ou alegre. Denunciamos o que é urgente.

Quem foi mesmo que disse que o meu existencialismo está fora do tempo?! Ah, o tal comentarista sem nome. Pois, pois, claro que obscuro é esse comentador. Deixemo-lo em paz, pois!

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