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The walking life

10 de Maio de 2020, por Evaldo Balbino

Em vídeo postado nesta semana de maio de 2020 nas redes sociais, o velho e grande Lima Duarte comenta que entende a despedida do Flávio Migliaccio, que decidiu partir desta vida no início desta semana.

Lima Duarte e Flávio Migliaccio são artistas com A maiúsculo. Artistas num país em que, parece, artistas não valem nada, pessoas não têm valor, idosos são restolho de vida.

Aliás, nos últimos três anos, artistas no Brasil são tidos cada vez mais como desnecessários, e mais ainda porque o próprio poder instituído vocifera isso aos quatro ventos, com seguidores propalando violência e ódio. É o que estamos vivendo: o máximo poder político da nação e seus seguidores estão semeando o bafo podre da ditadura, da censura, do autoritarismo.

Artistas para quê? A fome de beleza, parece, está obnubilada nas cabeças de muitos. Tenho a sensação de que o ódio está vencendo a beleza, todo tipo de beleza.

Sempre acreditei e ainda luto para acreditar no Brasil. Mas este meu país tem mostrado, cada vez mais, que ele precisa ser refeito. Se instituições nãos nos guardam, se nós não nos amamos, apelemos para Deus. Mas Deus requer nossa parte na refeitura deste planeta chamado Terra. Cadê a nossa parte?!

Digo o que diria Drummond: E agora, José?.

Parabéns, Migliaccio! Parabéns, Lima! A trajetória de vocês dois, num país em que artista é vintém de cobre (Viva Cora Coralina!), é algo imenso e louvável, apesar do ódio que nos rodeia, não só em grande parte do Congresso e entre muitos dos que estão nos meandros políticos, mas também entre tudo e todos.

O ódio com roupa de morte atravessa uma sociedade – dita cristã – em que muitos estão esquecidos do que deveria ser de fato um cristão, do que deveria sem dúvida alguma ser resumo de tudo: AMOR. Aliás, foi esse sentimento que o próprio Cristo ensinou. Acrescento mais: o amor é alicerce dos grandes e evoluídos pensamentos político-religiosos, portanto não apenas do pensamento de Jesus Cristo. E mais ainda, o amor tem a ver com ética, com respeito, com diálogo, com a con-vivência, com o viver com. O que, entretanto, os chamados cristianismos muitas vezes fizeram e vêm fazendo em nome de Deus ou de Cristo não é demonstração de amor.

O vídeo de Lima Duarte deveria ser visto por todos os brasileiros. Até mesmo por aqueles que, historicamente, foram despojados duma formação que poderia ter-lhes dado acesso a uma consciência político-religiosa libertadora.

Esse mesmo vídeo, melancólico mas libertador porque portador de nobres sentimentos, foi gravado agora, em pleno mês de maio. Atravessamos, na política brasileira e na saúde brasileira e mundial, dores profundas. Mas insisto: estamos em maio. Mês de Maria, mãe de Jesus; mês das mães, das noivas e dos noivados, dos casamentos, das núpcias; mês amarelo cheio de coisas brilhantes semeando vidas.

Neste mesmo mês de maio, numa quarentena a que bilhões de pessoas estão sujeitas na Terra, assisti às até agora duas últimas temporadas da famosa série The walking dead. Milhões de pessoas, talvez, vejam essa série pelo suspense, pelo terror, pelos zumbis que, caminhando como vivos e ávidos por sangue quente, são um perigo andante pela vida. Eu, entretanto, vejo na série o que há de análise do ser humano, em todas as suas contradições em trânsito entre o bem o mal, sem binarismos. E, nas contradições humanas, amo ver o que resta ainda de amor, de perdão, de um se colocar no lugar do outro numa verdadeira con-vivência para a sobre-vivência.

Nessas temporadas até agora derradeiras, há muito de vida perante a morte. Na abertura, ilustrações de moinhos de vento dependuradas em árvores; também na abertura, o moinho de vento imenso na comunidade de Hilltop lembrando-nos dos moinhos de vento em Dom Quixote (portanto nos lembrando da luta incessante contra o que é invencível, mas nos indicando no seu giro sem fim a luta pela vida, o ar movendo as pás, o ar que respiramos e muito mais forte do que as ilusões). Ainda na abertura, uma árvore florescendo e pássaros voando, cavaleiros e amazonas em seu cavalos, flor trepadeira brotando dum crânio ao chão e se alastrando sobre o longo cabo de um rastelo cravado nesse crânio, as pás do moinho rodando vitais diante das catástrofes ao fundo... E duma cena, dentro dum episódio, não me esqueço, porque quero amar as coisas belas da vida: Daryl Dixon, com sua besta às costas e em sua vida de lobo solitário na floresta, vê preso a um tronco de árvore um zumbi; pensa em “matá-lo” de uma vez por todas, mas percebe um pássaro colhendo-lhe das cavidades pequenas larvas e com elas alimentando, num ninho, filhotes com bicos cheios de vida e esfaimados; Daryl desiste de “matar” o zumbi, pois vê ali fonte de vida, vida pura e plena.

Neste mês de maio, estou atravessando melancolias pelas dores do Brasil e do mundo, mas dessas tristezas vou tecendo reflexões, porque ainda desejo profundamente acreditar na humanidade. Sonho que ela pode florir, política e religiosamente.

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