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Tia Donana

19 de Agosto de 2021, por Evaldo Balbino

Chamava-se Ana, nome que se fundia ao “dona”, funcionando este vocábulo como forma de tratamento, chegando-se à formação de don’Ana. Escrevo “Donana”, sem apóstrofo, porque o nome passou a ser de fato, na boca do cotidiano, uma palavra só, sem sinais diacríticos duma escrita cheia de paramentos.

Eu ainda pequeno, e a família morando no povoado do Ribeirão de Santo Antônio. Não sei se foi a minha primeira ida a Resende Costa, mas tenho comigo que é a primeira lembrança que tenho da pequena cidade.

Depois da trajetória entre latas de leite, na carroceria dum caminhãoque nos levara para a cidadezinha, mamãe segurava minhas mãos nas ruas vazias que eu não conhecia. Vazias sim, porém mais animadas do que as estradas do Ribeirão. A casa que meus pais construíam já estava quase pronta. Em breve seríamos mais vidas entrando para a estatística do êxodo rural.

Agora, entretanto, era um passeio rápido, o olhar pequeno vendo mundo tão grande. Ainda não era a mudança definitiva. Pernas e mãos franzinas de um turista em formação.

Chegamos de tardezinha à vila. A rua descalça. Nós descendo empoeirados do caminhão em que antes estávamos empoleirados, gado humano em meio ao leite de vaca. E foi com o cheiro de leite gordo das vacas rurais do município que entramos na casa que meu pai erguia com suas mãos pedreiras.

Lembro a conversa do pai e da mãe, ele mostrando a ela a sala, os três quartos, a copa funcionando como cozinha improvisada. Da copa abria-se uma janela para outra parte interior da vivenda: mais quatro cômodos à espera de família grande, os quais se tornariam depois mais um quarto, o banheiro, a despensa e a cozinha de tamanho muito bom. Na conversa, os olhos da mãe alegres com o que viam, e sua boca depois dizendo que iríamos à casa da comadre Fátima, minha madrinha.

Não me lembro de ter visto antes a madrinha. Esta também foi para mim a primeira visão dela. A rua descalça com buracos e pó. Os poucos postes acesos davam um respiro de luz, mesmo que pouco, à nossa passagem. Bem diferente do Ribeirão, que ainda não tinha luz elétrica e que só ficava semiclaro à noite, quando a lua sorria com vontade e de cara redonda no céu. Meus olhos mergulhavam na mágica dos postes, o mundo fugindo do breu. Pedi bênção à minha madrinha, e até hoje a trato por tia, com um carinho sem medidas.

Depois, a volta ao nosso canto em construção, com a promessa de no dia seguinte irmos à casa da tal tia Donana. Dormi com barriga cheia de comida boa feita por mamãe.

Pela manhã, a brasa em mim. Diziam que, como minha mãe perdera a sua mãe quando tinha somente dois anos de idade, a tia Donana passara a ocupar essa função depois de ter-se casado com o meu avô, o Chicota.

Na entrada da casa da tia Donana, uma cena sem fim.

Minha mãe me puxando pelos braços. Primeiro o Tibastião e a Tialorde (mais nomes criados pelas fusões que nossas línguas fazem). As mãos estendidas, minha boca pedindo bênção. Depois um corredor estreito entre a casa e a caixa d’água (aqui uso o apóstrofo). Grande a caixa, alçada com vigor, tijolo e cimento, chegando à altura da casa, competindo com ela na utilidade para a vida. Na casa moravam pessoas; na caixa de cimento, muita água para saciar a sede e a higiene humanas.

Em seguida uma guinada para a esquerda, uma área de serviço e uma pia. Ao lado da pia, Deus! Um ser meio corcunda; cabelo branco e pouco que, preso em coque, parecia curto; óculos escondendo olhos pequenos; mãos e dedos antigos vindo na minha direção. Era Deus, só podia ser Deus, aquele Deus de que me falavam desde sempre!

E de repente Deus abriu a sua boca! Não foram trovoadas sobre o monte Sinai o que ouvi, porém uma voz débil e feminina. Era uma voz trêmula. Não era Deus o que eu via e ouvia. Era a madrasta de minha mãe. E ela se abaixou com certa dificuldade, passou as mãos na minha cabeça e foi logo dizendo “Pede benção pra vó!”.

Pedi-lhe a bênção. Enquanto todos iam conversando tantas coisas de que não me lembro, fiquei num canto abraçado ao medo nunca antes sentido. Medo da vó-madrasta.

Na saída, um presente da Tia Donana, talvez em paga pela bênção que eu lhe pedira. Ela me deu um caqui, fruta estranha aos meus olhos, estrangeira mesmo para mim à época. Meio verde, o pomo apertou minha boca, deu-lhe um gosto de travamento, de secura da vida. O fruto prendeu-se ao meu paladar do mesmo modo com que fui descobrindo pelo tempo que Tia Donana não era Deus, nem mãe de minha mãe. Era a madrasta da que me guiava com mãos maternas.

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