Voltar a todos os posts

Tio Totonho

13 de Agosto de 2019, por Evaldo Balbino

Era filho de Olívia, avó de meu pai. Vira juntamente com a mãe o assassinato do patriarca. E desde então afastou-se das festas religiosas. A morte terrível, facadas infindas e afiadas, não podia ter acontecido num adro de igreja. Tudo bem que era um adrode terra e grama simples ao redor da capela. Mas chão sagrado não precisa de belezas materiais; apenas de Deus. E como não precisa de belezas, tampouco carece de violência. Aliás, qualquer ato violento é desadorno, é descontrole da bela engrenagem da vida.

Com ares de coroinha, mas sem exercer a função, tio Totonho não quis mais frequentar a capela. Desgostoso de tudo, continuou junto da mãe, trabalhando no eito, tangendo gado, comprando e vendendo galinhas e carne e terra. No povoado do Ribeirão de Santo Antônio, viam-no um homem labutando e contando casos, alegre e jovial.

Anos depois chegou na pequena cidade um homem que se chamava João Batista. “O protestante”, dizia o povo. Não bem aceito dentro da vila, tal homem empedernido, como Pedro o fora, debandou-se para os povoados na crença de que nos rincões encontraria almas mais propensas a ouvir a palavra de Deus. E foi no Ribeirão de Santo Antônio que ele encontrou fiéis para suas pregações. Totonho tornou-se um deles.

Ouvindo e crendo e achando que outras possibilidade de religação com o sagrado ainda lhe eram oferecidas, a graça mesma descendo do céu, batizou-se nas água correntes do rio Santo Antônio. Como o Batista tinha que ir para outras bandas, para outras ovelhas, Totonho foi erguido a cooperador da nova igreja no povoado.

Na igreja em questão, cooperador é o que os templos evangélicos chamam de pastor. Mas pastor é Jesus, dizia Totonho, o que faço é só pregar a palavra de Deus. Na ótica da nova igreja, “cooperador” é aquele que coopera com a obra divina, trabalha para ela nos momentos que a faina da vida permite. Com isso, ele é o que perfaz a pregação de São Paulo na I Epístola aos Coríntios: “Não sabeis vós que os que prestam serviços sagrados do próprio templo se alimentam? E quem serve ao altar do altar tira o seu sustento? Assim ordenou também o Senhor aos que pregam o evangelho que vivam do evangelho; eu, porém, não me tenho servido de nenhuma destas coisas [...] Neste caso, qual é o meu galardão? É que, evangelizando, proponha, de graça, o evangelho, para não me valer do direito que ele me dá.”

E assim Totonho foi evangelizando: de graça como de graça Paulo o fizera. E, também como o apóstolo, nunca se casou.

A nova igreja foi se formando aos poucos. Os fiéis eram, em sua maioria, parentes entre si. Uma ou outra alma vinha de diferentes troncos, de distintas árvores genealógicas a se perderem nos ramos do tempo.

Nos dias úteis da semana, o homem guiava bois, plantava e colhia frutos. Transportava milho, feijão, abóbora e arroz. Tudo isso no seu carro-de-boi. Pregava a palavra de Deus sim, mas lá no seu íntimo, de vez em quando, uma fúria brotava, e ele ferroava os bois na canga sem dó nem piedade. A justa piedade que ele pregava a todos e também a si. Nas noites de sábado e nas tardes de domingo, vestia seu terno simples e sério e ia para a igrejinha singela de chão liso e amarelo. Subia ao púlpito e, com palavras sábias, sem escola formal nenhuma, lia gaguejando os versículos da Bíblia e depois exortava o lido com olhos fixos e humildes em toda a igreja.

Ia diversas vezes a São João del-Rei e voltava com sacos cheios de sebo, massa branca e fedorenta que ele vendia às casas da redondeza para o fabrico de sabão preto. Quando ele passava lá em casa, deixava o saco com sebo no chão rente à porta da cozinha, entrava a convite dos meus pais, tomava café, proseava, ria, contava piadas. E eu no meu canto, esconjurando aquele sebo fedorento no saco bem lá na porta. Minha ojeriza não era com o tio, mas com o sebo colocando cheiro de morte e de vida podre em toda a casa.

Passaram-se os anos. Como tudo envelhece, envelheceu o tio Totonho e morreu. Ausentou-se das andanças, sumiu-se lá de casa. Disseram que morrera de câncer. Estranhei quando nomearam a doença tão abertamente. Naquela época, usavam rodeios para ela, perífrases que amainavam o medo de todos, mas nunca o sofrimento.

Deixe um comentário

Faça o login e deixe seu comentário