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Vô Chico Cota

11 de Outubro de 2020, por Evaldo Balbino

Gostava de uma sanfona, e com ela às costas ia a bailes em noites animadas. Cruzava os escuros do Ribeirão de Santo Antônio; seus olhos, porém, brilhavam pensando nas músicas tocadas, nas danças eróticas de cavalheiros e damas. E eram nos terreiros das casas essas festas. Comida, bebida e pés levantando poeira do chão.

Com sua sanfona, gostava de tirar Folia de Reis. Em cada início de janeiro, a lembrança do Menino Deus fazia os foliões saírem pelas estradas do povoado e adentrarem casas que os recebiam de janelas, portas e braços abertos. Vô Chico era um dos magos do Oriente, como a peregrinar atrás da Estrela Guia desde sempre eterna e anunciadora dum grande sentimento humano: o perdão. Os magos saíam logo ao anoitecer e iam andando de porta em porta pedindo pousada. Todos eram pândegos e religiosos, num sentimento sacro e carnavalesco. Quantidade boa de músicos e instrumentos vários, entre os quais tambor, clarineta, viola, reque-reque, pandeiro e sanfona. Chico Cota era sempre o certo sanfoneiro, como acertadas tinham sido as profecias dos profetas falando do Salvador dos povos. Na frente do bando seguia um mascarado, o Bastião, que brandia uma varinha enfeitada de fitas. No limiar de cada porta que visitavam, música alta se tocava para aleluia e fuzuê da vida.

Era namorador o vô Chico. Sua esposa, a vó Laurinda, partira cedo aos 38 anos. Tempos depois ele entrara de namoro com uma viúva dali mesmo, com quem depois se casara. Casado com ela ficou até a morte, mas os olhos não têm cerca e pulam os tapumes que nem boi ladrão. Os dele pulavam tanto, que nas Folias de Reis de todos os anos não suportavam a tanta alegria de ver a Nhá Rosa vestida de cigana do Egito. Ela andava no meio da folia segurando o estandarte da Sagrada Família e a imagem do Menino Jesus. Pastorinha guiando a vida, Rosa usava longas tranças pretas. Postiças, porém verdadeiras como dogmas perante todos. O adereço preso nos cabelos curtos era de folha de piteira. Ainda moça, Rosa cortara a folha dum pé próximo da sua casa, e numa bica d’água lavara as fibras até que ficassem branquinhas. Depois, pusera os filamentos e tinta preta numa panela com água e fervera tudo. As fibras já secas foram trançadas e desde então passaram a enfeitar sua cabeça e rosto, brilhantes e rematadas com fitas vermelhas. Os olhos do Vô ficavam tontos do vermelho das fitas nas tranças de Nhá Rosa.

Em cada lugar, as pastorinhas entoavam “Dona desta casa, / venha nos abrir a porta...”, e Rosa cantava sua parte: “Sou cigana do Egito / nas montanhas de Belém. / Vim tirar a minha esmola; / cada um dai o que tem!”. Os foliões, repentistas, improvisavam versos a partir de temas bíblicos. Quando os donos da casa gostavam dos cantos, escondiam o donativo para segurar ali a folia. Os religiosos histriões só iam embora depois de achar o dinheiro. Esmola dada, agradecimento feito: “Deus vos pague a vossa esmola / dada de boa vontade. / Lá no céu tereis o pago / da Santíssima Trindade.”. O óbolo, nesse grupo, era destinado a São Sebastião; contudo, ia na verdade para a Igreja.

O Vô também pescava, e muito. Arrancava as minhocas, preparava o anzol, os embornais impermeáveis com a água onde punha os peixes retirados dos rios. A pesca lhe era um ritual sagrado, não só porque lembrava o Salvador na Galileia, mas também porque tudo aquilo era diversão certeira. A água silenciosa e os pescadores também para não haver espantos. A linha puxando, as rabanadas no ar, e o tempo sendo atravessado de júbilo.

Quando mais jovem, Vô Chico deixara os filhos meio a esmo, eles cuidando uns dos outros. Principalmente quando, tendo brigado com a segunda esposa, esta se fora para sua antiga casa e ele seguira atrás, não contando com os filhos ainda novos. Minha mãe, nessa época, tinha tão-só 8 anos de idade. A depois, porém, o juízo tomou conta dele. Amor mais demonstrado aos filhos, madureza.

Quando meu pai começou o namoro com minha mãe, vô Chico aproveitava que o jovem sabia ler e se interpunha entre os dois namorados no banco da sala, à luz da lamparina, e pedia ao futuro genro que lhe ensinasse o abc. E sua alfabetização, feita pelo moço enamorado, deu-se através duma História Sagrada de que meu vô não se separava.

Hoje sei que sagrada também é toda essa história do vô e dos que com ele conviveram.

Comentários

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    Evaldo Balbino, como não se apaixonar verdadeiramente por você... por suas crônicas... por seu vô, Chico Cota é pela linda Rosa Cigana com sua cabeleira de pita, lavada na bica e alvejada, depois tingida na tinta preta? Poeta / Nosso, você nos encanta! Como trabalha bem a linguagem, de forma tão simples e rica! Parabéns!


  • Author

    Evaldo, querido poeta nosso: como não se apaixonar por suas crônicas e , especificamente, dessa vez pelo vô Chico Cota? Que pena, quando terminou! Que figuraça a Nha Rosa e sua peruca de cabelos de piteira, alvejados na bica d'água e depois tingidos a tinta preta, relançados e enfeitados com fitas vermelhas. Que LINDEZA, Evaldo! Sinestesia pura... você a retratou perfeitamente. Que resgate você fez ! Parabéns! Ainda... linda a analogia feita, coloquei-o aos Reis Magos. Você nos encanta.


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